domingo, 30 de setembro de 2018

Irlanda – Uma incursão pela “Ilha Esmeralda”...





Texto: Luís de Matos
Fotos: Luís de Matos, Maria José Lopes 
e Ana Sofia Matos

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Fotos: Trajecto




Faltava-nos a Irlanda!

Apesar de ser relativamente próxima, a verdade é que os bons ventos nunca nos tinham levado para este país. O mais próximo que tínhamos estado, em 2010, havia sido na Escócia e nas ilhas Hébridas de Skye, Harris e Lewis. Olhando para o mapa das viagens familiares que já tínhamos realizado a bordo do Pantera Negra, a "Ilha Esmeralda" quase que nos pedia para a visitarmos!

Entretanto, este ano e após quase uma década de ausência de ligação directa, voltou a existir uma ligação de ferry-boat entre o Norte de Espanha (Santander) e a Irlanda (Cork). O navio Connemara já terá tido melhores dias e o serviço estava classificado de (mesmo!) bastante básico, mas teria de servir… Não havia outro! 

Pois! Esgotadíssimo, mesmo com meses de antecedência… A alternativa mais interessante seria a de se fazer o trajecto via Roscoff, na Bretanha, que tinha uma ligação directa com Cork. Do mal, o menos. Sempre nos permitiria revisitar alguns pontos emblemáticos de viagens anteriores, como La Rochelle, Saint-Malo e o Mont-Saint-Michel. Visitas sempre gratificantes! Para além de que o navio dessa ligação, o Pont Aven, era muito melhor! No trajecto de ida... Que no de regresso, era na mesma o tal Connemara... Pois! Esgotadíssimo, mesmo com meses de antecedência! Parecia impossível!

Mais umas quantas (muitas!) iterações com a Brittany Ferries (super profissionais e sempre simpáticos), e lá conseguimos passagens e cabine para os dois trajectos, no Connemara... Voltávamos aos planos iniciais: "Santander  >>>  Cork  >>>  Santander"! 

Já na Irlanda, havia que encaixar tudo o que se queria ver e fazer entre as datas de chegada e partida do dito ferry-boat. Uma semana apenas! Um exercício de compromisso, em que muito ficaria, necessariamente, por ver e fazer. Ainda estamos para perceber alguns amigos que nos afiançavam que, "em dois ou três dias vêm aquilo tudo". Nem de perto, nem de longe! Um país a revisitar com mais tempo, por certo!

Voltávamos aqueles países de estradas estreitas, e condução "do lado errado da estrada"! Optámos por fazer o trajecto no sentido dos ponteiros do relógio. Começámos pelo Ring of Kerry e, claro, por uma há muito planeada visita ao Mosteiro do rochedo de Skellig Michael. Só que o pessoal dos filmes da série Star Wars também deve ter visto os mesmos velhos documentários do National Geographic e, "bora lá filmar umas cenas maradas lá no cimo"... Passou quase a atracção número um do país e, claro, tudo esgotado com meses de antecedência! Avançou-se com o já bem afinado “procedimento das muitas iterações com os nativos"... e lá conseguimos três lugares no Mary Frances. É que as autorizações de desembarque na ilha são limitadas e só um reduzido número de pequenas embarcações de pesca tem autorização de atracagem. Com a súbita popularidade granjeada pelo Star Wars..., não chegam para as encomendas!

Continuamos pela Península de Dingle, subindo a Wild Atlantic Way até ao Donegal, e descendo depois pela Coastal Road da costa Leste, de novo até Cork. De permeio, uma incursão à Irlanda do Norte… Antes que as turbulências do Brexit tornem a coisa mais complicada.               

Em Dublin, fim-de-semana de Missa Papal, integrada no "World Meeting of Families"! E planos para o reencontro com amigos que mudaram para lá as suas vidas profissionais.

Algures nos anos noventa do século passado, um amigo, Keith Gavins, à época o Chefe da Central Termoeléctrica do Pego, havia-nos emprestado uma cassete VHS com actuações dos RiverDance. A primeira aparição dos RiverDance, então apenas uma produção, ocorreu num intervalo do Festival da Eurovisão de 1994, em Dublin. Fez sucesso e, de uma simples produção para preencher um pequeno intervalo, desenvolveu-se todo um espectáculo grandioso.

Não conhecíamos aquele género de danças Célticas e ficámos fascinados. Ora, nem a propósito..., os RiverDance (entretanto tornados famosos e mundialmente conhecidos) actuavam por estas alturas em Dublin! Bingo!

Os guias de viagem da American Express e da Lonely Planet têm fama de ser os livros mais optimistas e positivos do mundo! Neste caso, acreditamos que pecam por defeito…                 

"… a popularidade da Irlanda como destino turístico é assegurada pela profunda herança cultural, pelas paisagens deslumbrantes e pelas pessoas. As ruínas Celtas, os fortes medievais e as casas imponentes, que salpicam a paisagem, dão à ilha um ar majestoso..." - in American Express.           

A Irlanda é mais um daqueles países que, muito provavelmente, também poderíamos vir um dia a chamar de "segunda pátria". Está-se bem na Irlanda!                                                                           

  Bíodh turas deas agat!!!!   
                                 







  



Quando nos esquecemos de avisar o Poseidon…


Sair razoavelmente cedo e atravessar Espanha é já algo a que nos habituámos. Uma ou outra variação nas paragens e no poiso para almoço, mas, a verdade é que o trajecto é sobejamente conhecido. Procuramos pois devorar quilómetros e aproveitar o final da tarde e a noite para descansar e desfrutar do “ponto de escala”. O ferry-boat zarpava apenas no dia seguinte a meio da tarde.

Só tínhamos ainda tido a oportunidade de cruzar Santander uma vez, quando visitámos Santillana del Mar e as grutas de Altamira, Património da Humanidade, pela UNESCO.

Capital da Cantábria, a cidade encantou-nos pela sua história rica, que remonta ao século I A.C., pela sua dinâmica, pela sua gastronomia e pelas suas gentes, calorosas e acolhedoras. O grande incêndio de 1941 destruiu praticamente toda a área de traça medieval, de elevada densidade populacional. A reconstrução que se lhe seguiu, reflectiu a urgência e as limitações financeiras.

O turismo também redescobriu Santander e o movimento é permanente e bastante positivo. Claro que existe sempre uma alimária que, mesmo quando estamos a enquadrar para fotografar os Raqueros, se coloca à nossa frente a tirar fotografias de vários ângulos, se senta junto das estátuas, tira várias selfies com cada uma delas, desfruta cada momento vagarosamente… Confesso que tive uma vontade quase irresistível de pegar naquele idiota pelos fundilhos e lança-lo à água! Mas aguentei-me, claro!

No último século e meio, o impacto positivo que as cinco gerações da família Botín por aqui tiveram (e continuam a ter) é impressionante. Assim como impressionante e plenamente justificado, é o respeito e carinho que lhes nutre toda a população!
































Fotos: Santander.



Roteiros “turístico-histórico-cultural-gastronómico-copofónicos” da praxe realizados, e era hora de nos dirigirmos ao porto, mesmo em frente ao hotel. Aquilo estava tudo em obras e, claro, entrámos pelo lado errado, pelo que até há pouco tempo teria sido o acesso rodoviário habitual… Paciência e simpatia do pessoal do porto e da polícia local…, e lá nos abriram os portões de serviço, para que não tivéssemos de ir dar uma volta de quilómetros. Muchas gracias!!! Escusado será dizer que, desde ali até ao barco, toda a gente nos conhecia e ao Pantera Negra!

O Connemara é um navio relativamente recente, com apenas uma dúzia de anos, e não muito grande. Tem uma tonelagem bruta de cerca de 27.000 toneladas. Bastante menos que as 38.000 toneladas do Pride of Bilbao (viagem à Escócia) e que as 36.000 toneladas do Norröna (viagem à Islândia)…, o que o torna mais “ágil”, potenciando a experiência de “sentir bem o mar”. Para melhorar a dita “experiência”, o nosso camarote era na vante do navio, logo abaixo da ponte de comando (procuro marcar os camarotes sempre a “meio navio”, a zona mais estável, mas desta vez foi que se arranjou). Entretanto, as previsões meteorológicas não eram nada animadoras e vimos o pessoal de serviço a calçar firmemente todas as rodas dos veículos embarcados… Depois, o Comandante também alertou para o estado do mar, mas sempre dizendo que iriam utilizar as alhetas estabilizadoras para tornar a viagem o menos desconfortável possível… Bem, a coisa já devia ser habitual, pois nunca em nenhum dos navios em que já viajámos, havíamos visto tantos suportes com os “sac mal de mer”…, “sea-sickness bag”…

Pois! Alguém se esqueceu de avisar o Poseidon de que íamos cruzar o Golfo da Biscaia e o Mar da Irlanda. O dito estava de “sobrolho carregado” e a viagem preparava-se para ser agreste! E foi!

A baía de Santander está considerada uma das mais belas do mundo. De inegável beleza, sem dúvida, mas algo exagerada esta classificação. No regresso, depois de uma bem diferente viagem marítima, com “mar chão” e sol, já a achámos mais bonita!












Fotos: Connemara.









Pela “Wild Atlantic Way”, mais uma “Drive of a Lifetime”…




Atracámos ao final da tarde em Cork, zona onde a farmacêutica Pfizer tem, desde 1997, uma instalação onde se fabrica um muito famoso “comprimido azul”. Dizem os mexericos locais que, devido aos fumos da dita fábrica, “… even the dogs walk around with rock-hard …, thanks to the Viagra plant… (in the Cork village of Ringaskiddy)”! Um potencial paraíso para a “terceira idade”, portanto! Não chegámos a ir a Ringaskiddy.

Os tempos são outros e as épocas áureas das grandes indústrias estão a passar (Cork até fábricas de automóveis teve, ou o avô de Henry Ford não fosse um irlandês, de Cork!). Ainda assim, a zona mantém a sua pujança e fortes apostas nos estudos e, consequentemente, no trabalho de qualidade. Empresas como a Pfizer e a Novartis, a Apple e a EMC Corporation, a Amazon e a Motorola, entre outras, mantêm forte presença na zona.

Percebemos que chegávamos à terra do “abre guarda-chuva, fecha guarda-chuva” ou, numa abordagem mais ágil… “põe capuz, tira capuz”. Isto a meio do Verão! O ser humano habitua-se a tudo, claro. Daí a gostar, vai uma grande diferença! E a meteorologia que nos recebeu durante todo o tempo em que andámos pela Irlanda não se pode dizer que tenha sido grande coisa. Conseguiu ser pior do que a que experimentámos nas nossas viagens à Escócia, ao Cabo Norte e à Islândia! Dito isto, ainda assim e segundo o “pessoal da terra”, parece que tivemos bastante sorte com o tempo!

Dizer que fomos bem recebidos em Cork, é pecar por defeito. Fomos mesmo muito bem recebidos! Aqui e em toda a ilha. Não apenas pelos irlandeses, como por toda a gente. O ambiente é cosmopolita e, caso disso não nos tivéssemos apercebido ao deambular pela cidade, o tirocínio realizado nos “pubs” teria sido esclarecedor. Havia gente de todas as partidas do mundo, da Austrália ao Canadá! Gente de todas as idades, divertida e bem-disposta. Quanto ao que aquela malta consegue emborcar… fiquei estarrecido! Como nunca fui aos “treinos”, lá acompanho a refeição com uma caneca. A segunda já é só mesmo para parecer bem… Na primeira noite em Cork, numa mesa próxima estava uma família numerosa… já com umas quantas canecas vazias. Durante a refeição, enquanto eu me esticava o melhor que podia nas duas canecas, só a matriarca dessa família virou três! E, quando saímos, faziam menção de continuar… Ok! Quando for grande…

Como muitas cidades irlandesas de hoje em dia, Cork iniciou-se em torno de um centro monástico. Neste caso, o mosteiro de São Finbarr, do século VI. Quatro séculos depois, acabariam por ser os Vikings que, a par de todo o sofrimento causado pelas suas incursões e barbárie, promoveriam a transformação do povoado numa urbe de alguma dimensão, com um importante porto. Das muralhas que protegeram a cidade durante séculos, pouco chegou aos nossos dias. Quase sempre uma “cidade rebelde”, o apoio a facções, ora vencedoras, ora perdedoras, ditaram muito da sua história… e das suas reconstruções! A pujança das suas gentes sempre foi referencial e, como já referido, as últimas décadas viram fixar-se na zona muitas empresas nacionais e internacionais, quer da “velha” economia, quer da “nova”.

A “real capital of Ireland”, como por ali se lhe referem, não desiludiu, portanto. A segunda cidade do país vale uma estadia demorada. Num misto de estilos, percebe-se que a crise financeira da última década fez a sua moça. Mas a cidade está a desenvolver-se e a reinventar-se economicamente, com muitas e dinâmicas empresas um pouco por todo o lado, assim como uma consistente e visível aposta na recuperação e embelezamento das suas zonas mais históricas e ribeirinhas. Nem sempre é fácil conseguir conciliar o charme tradicional com o necessário desenvolvimento e modernismo. Cork pareceu-nos um excelente exemplo de sucesso nesta demanda.

As zonas mais interessantes situam-se numa ilha entre dois braços do rio Lee mas, de qualquer das formas, praticamente tudo é visitável a pé. Foi o que fizemos, de mapas e guias AMEX na mão.

Claro, não deixámos também de espalhar magia pela cidade com a nossa “actuação” aos comandos do carrilhão da igreja de Santa Ana. Do campanário tem-se uma vista soberba sobre a cidade e, ok…, o mecanismo de accionamento dos ditos “Shandon Bells” está disponível para o público poder fazer uma gracinha. Deve ser tramado viver nas proximidades…

Gostámos de Cork!

























































Fotos: Cork.






Se outro motivo não surgir para um regresso, a visita à destilaria antiga da Jameson (numa povoação próxima) e ao Jameson Heritage Center será sempre tentadora. No eterno “deve e haver” do viajante, a tentar encaixar no escasso tempo disponível tudo o que se deseja ver, optámos por deixar a destilaria para “outras núpcias”. Até porque já tínhamos visitado a destilaria da Talisker, na ilha de Skye.

Depois de mais um valente pequeno-almoço irlandês (e ponha-se “valente” naquilo!), despedimo-nos do pessoal do hotel, até ao nosso regresso, na véspera do embarque no Connemara com destino ao continente. Até lá, íamos deambular pela ilha, percorrendo a Irlanda propriamente dita e também a Irlanda do Norte.

Seguimos pela estrada que atravessa as Derrynasaggert Mountains rumo Killarney e, daí, para a primeira parte do chamado Ring of Kerry, na península de Iveragh.

A zona de Killarney e do Killarney National Park é, por assim dizer, uma máquina turística. Sempre que uma “escapadinha” o permite, Dublin e Cork esvaziam-se para aqui. Muito especialmente no Verão. Pode-se ter de conduzir horas em “pára-arranca”, atrás de autocarros vintage e carroças turísticas. A que se soma mais gente de bicicleta, mais gente a pé…, em estradas estreitas e quase sem bermas.

Fizemos o percurso em sentido inverso ao dos turistas, com excelente resultado! Uma prática que nos tinham aconselhado, quando da preparação desta viagem, e que aplicámos sempre que viável! Ainda assim, optámos por não atravessar o Gap of Dunloe, que estava “entupido” de trânsito. Seguimos pela ligação de montanha a Kenmare, com as devidas paragens, “lunch with a view” e o tal cafezinho da nossa Handpresso Auto na zona do Moll’s Gap, a que se seguiu mais um doce e outro café no Avoca Cafe, como manda a tradição!

O Killarney National Park foi declarado Reserva da Biosfera, pela UNESCO e, entre muitos encantos, tem os últimos Veados Vermelhos selvagens da Irlanda.
























Fotos: Killarney National Park


A partir de Kenmare continuámos pelo lado Sul da península de Iveragh, junto à costa, via Sneem, Caherdaniel e Waterville, até Portmagee. O trajecto mais visitado da Irlanda acabou por não ter muito trânsito. Era domingo à tarde e a maioria do pessoal já tinha regressado às cidades. Por outro lado, a meteorologia estava miserável… Quase que não deu para tirar fotografias aos recortes da costa e o miradouro da Coomakista Pass estava “escondido dentro das nuvens”.

Estávamos em plena Wild Atlantic Way, 2.600 km de estrada panorâmica ao longo da costa Oeste da Irlanda. É considerada uma das mais longas estradas costeiras do mundo. Começa na povoação de Kinsale, próximo de Cork, e segue até à península de Inishowen, no Norte da ilha, terminando em Londonderry.

“…The Wild Atlantic Way is the world's longest defined coastal touring route. It's inspiring, renewing, relaxing and invigorating. It's yours to experience however you choose (…) a sensational journey of soaring cliffs and buzzing towns and cities, of hidden beaches and epic bays (…) In the isolation or perhaps expressed in a different way living near and with the Atlantic at your doorstep has ensured that old traditions and the Irish language have been preserved. A trip along the Wild Atlantic Way is also an encounter with the past (…) So, whether you drive it from end-to-end, or dip into it as the mood strikes, it's going to be a once-in-a-lifetime experience…” – in http://www.theWildAtlanticWay.com

Entrávamos no silêncio das paisagens quase desertas (mesmo no Verão!), a par daquele especial encanto dos cenários bucólicos. Um caminho quase sempre à beira-mar, numa Europa um pouco mais profunda.

As “danças das datas” das viagens de ferry-boat para a Irlanda deixaram de fora o plano inicial de assistirmos ao “Charlie Chaplin Comedy Film Festival”, que se realiza no final de Agosto, em Waterville. Durante muitos anos, Charlie Chaplin e a família passaram aqui férias. Ficou a ligação e a homenagem da vila ao génio do filme mudo. Pela nossa parte, uma respeitosa fotografia à sua estátua, junto à praia. Uns metros ao lado, a estátua de um "filho da terra". Michael O'Dwyer, estrela da gestão do futebol gaélico dos anos setenta e oitenta do século passado.





Foto: Caherdaniel.









Fotos: Waterville.





E chegávamos a Portmagee, uma povoação com uma única rua (ou quase isso), que foi a base de um dos pontos altos da nossa viagem, a visita a Skellig Michael, Património da Humanidade, pela UNESCO!











Fotos: Portmagee.


Como combinado (já há largos meses!), mal chegámos, falámos com o Nealie Lyne, capitão do Marry Frances, a saber das previsões meteorológicas para o dia seguinte de manhã… Ok! À partida e se o tal Poseidon não passasse muito mal a noite, teríamos condições de navegação até aos rochedos, assim como condições de ir a terra em Skellig Michael! Yes!!!

É que, desde há três dias que nenhuma embarcação conseguia sair do porto, devido ao estado do mar… Compreendemos bem o “filme”. Tínhamos feito esse mesmo mar, há dois dias, a bordo do Connemara.

O rochedo de Skellig Michael (assim como o mais pequeno e não visitável Little Skellig) fica apenas a uma dúzia de quilómetros da costa. Esconde um dos mais bem preservados exemplos de edificações monásticas primitivas, Cristãs, em zonas remotas e inóspitas. Ambos os rochedos são, também, importantes reservas naturais. Os acessos são restritos e levantam-se importantes questões de segurança, devidamente alertadas e explicadas pelos responsáveis das visitas. É que tem morrido gente, naquelas escarpas.

Diz-se que o Arcanjo São Miguel aqui terá aparecido a São Patrício e o terá ajudado a expulsar as serpentes marinhas do Mar da Irlanda… Daí o nome. As lendas do folclore irlandês apontam contudo para que o rochedo fosse conhecido e utilizado pontualmente desde tempos pré-históricos. Mais recentemente, por volta do ano 1.400 AC, aqui terá sido sepultado o capitão de um navio, após um naufrágio.

Não se sabe exactamente quando os monges aqui se estabeleceram em permanência. Há um oratório dedicado a Santo Agostinho e datado do século V, mas assume-se que foi só no século VI (pelo ano 588) que São Finnian de Clonard aqui lançou, no topo do rochedo, as bases de um estabelecimento monástico. Nos seis séculos seguintes, os monges foram construindo oratórios, celas, cisternas, acessos, escadas, muros, hortas, cemitério e tudo o que hoje ainda se pode contemplar. Sempre no maior isolamento e privação, e sujeitos aos ataques de piratas e às incursões dos Vikings. Um marco de Fé. Para quem vivia no “interior”, estes monges eram Homens Santos.

Já na zona do mosteiro, um guia deu-nos uma autêntica aula de história, sobre o local e a sua evolução física, sobre o seu significado na chegada e expansão do Cristianismo e, consequentemente, na sua influência no desenvolvimento e crescente alfabetização de terras tão remotas, que ultrapassavam as fronteiras dos impérios de então.

Descemos os seiscentos e dezoito degraus das escarpas num certo recolhimento interior. Se, por um lado, a paisagem era avassaladora..., por outro, não conseguíamos deixar de pensar naqueles monges e na grandeza da sua Fé.

O capitão Nealie Lyne e o filho aguardavam-nos a bordo do Marry Frances. Entretanto, chegou uma equipa da BBC / National Geographic, com centenas de quilos de equipamento… e dezenas de jerrycans de água potável! Vinham fazer um documentário sobre Skellig Michael. Só de pensar que iam ter de alombar com aquilo quase tudo até ao topo do rochedo, fazia arrepios…

Entretanto o mar acalmou e a viagem de regresso foi muito mais repousante!














 







































Fotos: Skellig Michael.


Para quem não conseguir (ou não puder) fazer uma “Skellig Michael landing tour”, deixamos a sugestão de visita ao Skellig Experience Centre, junto à estrada que liga à ilha de Valentia, com uma exposição audiovisual sobre a construção e história do mosteiro. Mas não é a mesma coisa…

Seguimos viagem para a zona Noroeste do Ring of Kerry. Paisagens fantásticas e praias óptimas para se andar encasacado, mesmo no pino do Verão!

A passagem sob o desactivado viaduto ferroviário de Gleensk, fez-nos recordar algumas vias ferroviárias portuguesas de rara beleza…, mas também desactivas nos dias que correm. Este viaduto fazia parte da Great Southern and Western Railway Line, considerado um dos mais belos trajectos ferroviários do mundo. Sobreviveu mais de um século. Foi, até, atracção turística. Está desactivado há vários anos. Pois…

Quase não vem nos guias e passa, muitas das vezes, despercebida. Paragem breve, portanto, em Killorglin, nas margens do rio Laune, mesmo à porta da península de Dingle. Despertou-nos a curiosidade a sua Puck Fair, reconhecida mundialmente, segundo os nativos. É um dos festivais mais antigos do país e a sua origem perde-se na noite dos tempos. Muito provavelmente, terá as suas raízes em celebrações pagãs, relacionadas com o ciclo das colheitas, em que o bode, o tal “Puck”, era o símbolo da fertilidade. Três dias de “festa rija”, a 10, 11 e 12 de Agosto, todos os anos!

Já na península de Dingle, desviámos para a Inch Strand, que havíamos avistado ainda do outro lado da baía.

Em Portugal, essencialmente por questões ambientais e de segurança, não é permitida a circulação de veículos particulares nas praias. Em muitos países, contudo, essa restrição não existe ou, pelo menos, tem zonas de excepção perfeitamente delimitadas. É o caso.

A Inch Strand é uma língua de areia com cerca de meia dúzia de quilómetros que actua como um molhe natural para os portos de Cromane e de Castelmaine. Seguindo o trilho, não há surpresas, nem é necessário mexer na pressão dos pneumáticos. A areia é firme e, com a meteorologia lá da terra, até um carro ligeiro se safa. As vistas valem a pena e, confessemos, até já tínhamos algumas saudades de conduzir em praia (a última vez tinha sido na Plage Blanche, há uma década atrás!).









Fotos: Cahersiveen.








Fotos: Gleensk.








Fotos: Killorglin.










Fotos: Inch Strand.






Foto: Annascaul.








Fotos: Dingle.



A península de Dingle é um dos trajectos mais conhecidos da Wild Atlantic Way. Como cereja em cima do bolo, percorremos a famosa Slea Head Drive, uma daquelas “Drives of a Lifetime” da National Geographic, da Top Gear…, e da Dangerous Roads também.

Num eterno jogo de “esconde-esconde” com o nevoeiro, a chuva e os esquivos raios de Sol, percorremos todo o circuito de cerca de meia centena de quilómetros, começando em Dingle e terminando… em Dingle. E sempre no sentido contrário ao dos turistas!

O percurso foi magnífico, com vistas espectaculares para os recortes da costa, ilhas próximas e para a montanha. Atravessámos uma das zonas do país com a maior concentração de monumentos antigos, fortes, estruturas megalíticas, estabelecimentos Cristãos primitivos e antigos caminhos de peregrinação.

Especial curiosidade despertou-nos a área dos Beehive Huts, um género de fortes em pedra seca, sem qualquer tipo de argamassa, de planta mais ou menos circular, na zona de Fahan. Pensa-se que terão sido construídos no início da era Cristã e que funcionariam, cada um, como estrutura de habitação, armazém, abrigo e defesa para uma família e respectivo gado. Alguns têm, inclusive, ligações entre eles. Terão sido habitados até por volta dos séculos XII ou XIII. Também construído em pedra seca, o Gallarus Oratory foi outra das construções dessa época (acredita-se que tenha cerca de 1.300 anos), que nos impressionou. É o mais bem preservado oratório dos primeiros tempos da Cristandade na Irlanda, tendo sobrevivido às invasões Vikings e Normandas, que arrasaram quase todas as construções da zona. Ainda se mantém impermeável à chuva!

Antes de regressarmos a Dingle, ainda visitámos a ponta de São Brandão, o Navegador, onde uma estátua evoca a viagem deste Santo até à América, por volta do ano 520. Difícil de encontrar! Os mapas que tínhamos eram muito pouco precisos e, por incrível que parecesse, os nativos a quem mostrávamos, quer os mapas, quer fotografias do que procurávamos…, ou não faziam a mínima ideia, ou davam-nos informações contraditórias! Mas demos com o sítio.

É curioso que, à medida que subimos na latitude, quase todos os povos têm sempre alguém que chegou à América do Norte em primeiro lugar… Aqui na Irlanda, na Noruega, na Islândia…, encontrámos sempre referências a navegadores que atravessaram o Atlântico Norte antes de todos os outros! Mantenho a preferência por Cristóvão Colombo, português de Cuba, ao serviço de D. João II, que, como espião, trabalhou para os Reis Católicos e descobriu a América em 1492. Porquê? Para desviar as atenções da coroa espanhola do objectivo português de descobrir o caminho marítimo para a Índia, contornando África (concretizado por Vasco da Gama, em 1497-1498, já no reinado de D. Manuel I).





















Fotos: Slea Head Drive.















Fotos: Slea Head Drive - Fahan.





















Fotos: Slea Head Drive - Dunquin.









Fotos: Slea Head Drive - Clogher Head.







Fotos: Slea Head Drive - Gallarus Oratory.








Fotos: Slea Head Drive - Ballydavid.


Foto: Slea Head Drive - Ponta de São Brandão, o Navegador.

Voltámos à encantadora cidade de Dingle e, daí, demandámos o Connor Pass, a mais elevada passagem de montanha da Irlanda. Mais uma daquelas estradas estreitas, à beira de penhascos, que serpenteiam entre sucessões de miradouros, cada qual com as vistas mais impressionantes. No pequeno espaço de estacionamento do miradouro principal, até uma carrinha de gelados ansiava por fazer as delícias dos viajantes! Ansiava apenas… É que as nuvens estavam tão baixas que, às vezes, quase não se via a vinte metros de distância. As famosas vistas, pois… Ficámos a imaginá-las! Desta feita, o tradicional “lunch with a view”, foi sem a “view”.

Entretanto, desde a saída de Dingle que a sinalização alertava para que a estrada era muito estreita e sinuosa e proibia a passagem de veículos com mais de 1,80 m de largura… O Pantera Negra é mais largo do que isso! Fomos avançando com o devido cuidado e tomando nota dos pontos em que ainda poderíamos fazer inversão de marcha. A estrada mantinha-se estreita, muito estreita e sinuosa. Em alguns pontos, a parede de rochas limitava também a altura máxima permitida (nem pensar em andar ali com uma auto-caravana!). A dada altura, os sinais de proibição passaram a estar virados para o “outro lado”. Uf! Já tínhamos passado o “estreito”!













Fotos: Connor Pass.


Olhando para o mapa e sabendo que íamos pernoitar em Limerick, era como se ainda estivéssemos no início da viagem do dia… Havia que nos fazermos à estrada, com tempo para uma visita a Tralee, cidade importante do condado, onde lanchámos divinalmente e até demos um ar de miúdos nas diversões da feira lá do burgo. Isto no último dia do Rose of Tralee International Festival, um importante evento que, na terceira semana de Agosto, desde há mais de meio século anima a cidade.









Fotos: Tralee.


E tempo também para uma paragem ainda mais demorada em Adare, para muitos, a povoação mais bonita da Irlanda. Polícia em todo o lado, passeios cheios de gente e uma moldura humana irradiando alegria, receberam-nos e ao Pantera Negra em Adare!

Pois… É que o Limerick tinha vencido o Galway e ganho a Liam MacCarthy Cup, sagrando-se All-Ireland Hurling Champions! Coisa que não acontecia desde 1973. Ainda para mais, parece que este tinha sido considerado o melhor campeonato de Hurling de toda a história deste jogo! No dia anterior, 90.000 pessoas em festa tinham recebido os campeões em Limerick! E, porquê (perguntámos nós…) esta celebração, aqui, em Adare? O capitão da equipa, o Declan Hannon era um “filho da terra” e vinha nessa tarde, com toda a equipa, celebrar em Adare!

Entretanto, a minha ignorância vinha ao de cima e eu não fazia ideia do que era isso do Hurling… Explicaram-nos que era um jogo irlandês, de origem Celta e parecido com o Hóquei em Campo, que rivalizava com o Rugby em popularidade. Duas equipas de 15 elementos (leia-se, umas “locomotivas” do mesmo tamanho, ou maiores, do que os tipos do Rugby…), procuravam colocar uma bola pequena, a "sliotar" (do tamanho de uma bola de Ténis), na baliza adversária. Utilizavam para isso uma espécie de tacos de madeira…, um género de cruzamento entre um cajado, um stick de hóquei e um taco de golf. Desde 2010, o capacete com protecção da face passou a ser obrigatório…













Fotos: Adare.


A manhã seguinte levou-nos às famosas Cliffs of Moher, a atração natural mais visitada da Irlanda, com cerca de um milhão de visitantes anuais. Devem também deter o recorde irlandês de aparições em cenários de filmes!

São oito quilómetros de falésias que, no seu ponto mais alto, atingem mais de duzentos metros de altura (214 metros). Quase no topo, a torre de O’Brien é um miradouro fabuloso, quer para as falésias, quer para as ilhas de Aran, para a baía de Galway, para os Twelve Pins do Parque Nacional de Connemara, para as montanhas Maum Turk e para a península de Loop Head.

Geoparque Global da UNESCO e Zona de Proteção Especial, as Cliffs of Moher abrigam a maior colónia de aves marinhas da Irlanda.

















Fotos: Cliffs of Moher.


Seguimos depois para Galway, para um almoço tardio (com grande pena nossa, o O’Connor’s Famous Pub ainda estava fechado!). Em tempos, um porto importante nas ligações marítimas entre a Península Ibérica e o Norte da Europa, Galway é hoje um porto de escala para artistas, intelectuais e jovens nas suas deambulações pelo mundo.

Contornámos a baía, magnífica, e rumámos a Connemara. Continuámos a seguir a Wild Atlantic Way e, à medida que avançávamos, sentíamos que nos embrenhávamos na Irlanda profunda, em zonas de enorme beleza, mas muito menos visitadas.











Fotos: Galway.


Após a vila piscatória de Clifden, com as suas casas pintadas de várias cores e uma baía resplandecente, apesar do adiantado da hora, não resistimos a percorrer a estrada panorâmica Sky Road, mais uma daquelas “Drives of a Lifetime” da National Geographic, pouco conhecidas mas que, de per se, valem a viagem. Cerca de dezena e meia de quilómetros entre paisagens únicas.


















Fotos: Sky Road.


Lentamente, a desfrutar da paisagem, continuámos pelos caminhos sinuosos do Connemara National Park, um autêntico caleidoscópio de paisagens deslumbrantes. Já era noite quando chegámos a Wesport, para um merecido repouso… e para uma aturada busca de um tasco em que pudéssemos fazer os devidos “reabastecimentos”. Aquela hora, parece que só já se vendiam cervejas em todo o lado! A cidade é conhecida pela sua dinâmica nocturna, e a coisa estava animada. Dentro dos pubs, claro, e a começar pelo Matt Molloy’s, que, segundo os nativos, não é apenas mais um pub, mas o melhor pub do mundo!. Fora dos pubs, Westport parecia deserta.























Fotos: Connemara National Park.


Quando desenhámos este passeio, a etapa “Westport >>> Londonderry” era a mais ambiciosa e a que mais decisões em “tempo real” iria requerer. Era uma etapa algo longa, face ao que queríamos ver e fazer. Por outro lado, também queríamos entrar na Irlanda do Norte ainda de dia. As negociações do Brexit andavam demasiado acaloradas e, embora fosse pouco provável, nunca se sabia se, de um momento para o outro, algum arrufo popular não provocaria dificuldades de circulação.

Saímos cedo e seguimos para Sligo, a terra do imortal poeta William Yeats, Prémio Nobel da Literatura em 1923, centro de música tradicional e, para muitos, a capital artística do Noroeste do país. Um amigo e colega, que em tempos por aqui esteve, recomendou-nos a cidade e os arredores.

Um desses arredores, a formação rochosa de Ben Bulben, pedia mesmo uma subida a pé. Pelo lado Sul, que o lado Norte costuma ser complicado. As vistas do topo do planalto são imbatíveis. Só que a subida levaria cerca de duas horas, mais umas horas para deambular pelo planalto e voltar a descer… e, logo no plano inicial, o Ben Bulben ficou destinado a ser visto apenas “cá de baixo”.

O outro “arredor” de Sligo era a ilha de Coney, a que é possível aceder pela Cummeen Strand na maré baixa… Um pouco na linha do que havíamos feito na Passage du Gois, na ligação a Noirmoutier-en-l’Île. Pois, a maré estava alta e a tal Cummeen Strand estava de “molho”!













Fotos: Sligo.


Rumámos assim para o Donegal, com as suas falésias, costa recortada, montes, vales glaciares e parques naturais.

A província do Donegal tem as paisagens mais agrestes da Irlanda, mas é descrita numa edição de 2017 do National Geographic Traveller como “the coolest place on the Planet”. É também e muito provavelmente, a província mais pobre e menos visitada do país. Questões históricas e geográficas ditaram um forte isolamento. A província tem a maior percentagem de falantes de língua gaélica da Irlanda e, na generalidade, a sinalização está em gaélico. Muitas das indicações de distância estão ainda no Sistema Imperial, embora tenha sido feito um significativo esforço na sua substituição pelo Sistema Internacional (ainda que com alguns erros nas conversões…). As estradas, na sua maioria, são bastante estreitas e o pavimento já viu melhores dias. É recomendável levar um bom mapa local.

Depois de uma rápida passagem pela cidade que dá o nome à província, seguimos para Oeste até às Slieve League. Praticamente desconhecidas, face às Cliffs of Moher, as Slieve League são quase três vezes mais elevadas. Com 601 metros de altura, estão consideradas as falésias mais altas da Europa. O forte vento que se fazia sentir voltou a oferecer o espectáculo da “chuva que sobe, em vez de cair” junto à falésia. Já nas Cliffs of Moher havíamos sido brindados com o mesmo efeito.

Logo após o miradouro superior, o “mesmo muito estreito” trilho One Man's Pass convidava a uma incursão até mesmo aos 601 metros do topo da falésia. Algo para tentar apenas em dias sem chuva, nem vento. E mesmo assim…, costuma estar interdito. Mas uma pequena caminhada de quinhentos ou seiscentos metros já permitia atingir um patamar de vistas soberbas, sem ter de entrar na zona perigosa.














Fotos: Slieve League.


Continuámos via Glencolumbcille e Glengesh High Pass a deabular pelo Donegal e pelos seus parques naturais, com especial destaque para o Glenveagh National Park. A equipa da Land Rover Owner International tinha, há uns anos, andado por aqui e publicado um artigo com caminhos e sugestões. Nem a propósito! Como estávamos sozinhos, não corremos riscos desnecessários, mas ainda assim, atravessámos paisagens deslumbrantes e percorremos caminhos que nos ficaram na memória.











Fotos: Glencolumbcille.
























Fotos: Glenveagh National Park.


Entrámos na Irlanda do Norte sem quase disso nos apercebermos e, quando demos por ela, estávamos em Derry, Londonderry para os britânicos… Num passado recente, a instabilidade do território mantinha o turismo à distância. Com o cessar-fogo de 1994 as coisas mudaram e o turismo é bem-vindo a toda a região.

Os mais velhos recordar-se-ão ainda do que foi Londonderry há umas décadas. Felizmente os tempos são outros e a cidade floresceu como um pilar cosmopolita de arte e cultura. Que assim continue, e que Deus permita que insanidades como o Brexit não venham a desenterrar os horrores do passado.

A Wild Atlantic Way termina aqui, em LondonDerry, ao fim de 2.600 km a seguir os recortes e caprichos da costa Oeste. Gostámos!














Pela “Coastal Road”, rumo a Sul…






Deixámos Londonderry não muito cedo, como era o plano original, com destino aos dois ex-libris da Irlanda do Norte, a Calçada dos Gigantes e a ponte de cabos de Carrick-a-Rede.

Já tínhamos visto este género de formações basálticas (quase todas) hexagonais em vários sítios, desde os Açores, à Escócia e à Islândia. Mas a Calçada dos Gigantes, Património da Humanidade pela UNESCO, com as suas 40.000 colunas prismáticas, excede todos esses outros locais.

A explicação científica, com as erupções vulcânicas de há sessenta milhões de anos e a contracção (e solidificação) de sucessivos fluxos da lava basáltica ao contactar com o ar ambiente muito mais frio, etc., é sobejamente conhecida… Mas não tem piada nenhuma! Gostámos muito mais de ler as lendas irlandesas “oficiais”, que rezam mais ou menos assim…

“… Era uma vez, um gigante irlandês chamado Finn MacCool e um gigante escocês chamado Benandonner. O irlandês, vai-se lá saber porquê, queria lutar com o escocês, mas não havia nenhum barco suficientemente grande para o levar. Então, resolveu construir uma calçada de pedra entre os dois lados. O gigante escocês, Benandonner, aceitou o desafio e foi à Irlanda à procura do Finn MacCool para lhe dar uma lição. Quando o irlandês percebeu que o escocês era muito maior do que ele, pediu à esposa que o vestisse de bébé e que disse ao escocês que o marido já vinha… Quando o gigante Benandonner chegou a casa do gigante Finn MacCool e viu o bébé, pensou…
- ‘Se o bébé é deste tamanho, não quero conhecer o pai dele!’
E fugiu de volta para a Escócia, destruindo quase toda a calçada para evitar que o Finn MacCool o perseguisse!...”

Muito melhor, esta explicação!

Os folhetos e mapas do National Trust complementavam bem as informações que já levávamos e ilustravam vários circuitos de visita, uns mais fáceis, outros mais difíceis... Fizemos o trilho “vermelho”, pois com certeza! Vistas magníficas! Só que, quando ainda estávamos na zona da cumeeira, do nada levantou-se uma ventania, acompanhada de chuva, que quase nos fazia “levantar voo”! O tal trilho “vermelho”…







































Fotos: Calçada dos Gigantes.


Continuando pela Coastal Road, dirigimo-nos à ponte de cabos de Carrick-a-Rede.

Desde há quase quatro séculos que os pescadores de salmão estendiam cabos e redes entre o rochedo e terra firme, por forma a acederem aos melhores pesqueiros. Hoje, existe uma ponte de cerca de vinte metros de comprimento, por um metro de largura, suspensa a trinta metros do mar. A passagem não oferece dificuldade, mas abana com o vento e, claro, impressiona q.b.. Em situações climatéricas adversas, as autoridades responsáveis encerram-na. Passámos no teste!

























Fotos: Ponte de cabos de Carrick-a-Rede.


Devo ser dos poucos seres vivos da Era Moderna que não segue religiosamente cada episódio da Guerra dos Tronos… Mas, quando a nossa filha sugeriu a visita ao local, durante o planeamento da viagem, já sabia o que eram as Dark Edges! Uma estrada ladeada de faias, plantadas no último quartel do século XVIII por James Stuart e esposa, cujos ramos se “entrelaçam” formando um túnel de grande beleza.

Infelizmente, devido às hordas de turistas que, devido à Guerra dos Tronos, descobriram as Dark Edges, o acesso é condicionado e aquela planeada fotografia especial com o Pantera Negra enquadrado pelas árvores e ramos entrelaçados… Pois! A estrada está vedada ao trânsito…













 
Fotos: Dark Edges.


Voltámos à panorâmica Coastal Road e descemos a costa e as Glens of Antrim, mesmo junto ao mar.

Chegámos a Belfast ao final da tarde e o Pantera Negra fez imediato sucesso junto ao hotel!

- De onde veem? Quantos quilómetros tem? Andaram nestes países todos com ele?... - A habitual amena cavaqueira de “petrolheads”, que gostam da marca!

Já tenho referido isto… A Land Rover lá terá os seus planos e restrições, mas a verdade é que está a desaparecer dos mercados que foram a sua razão de ser. Até aqui, onde se esperaria que a marca mantivesse alguma pujança, quase que não se vê. Enfim…

Ainda se ponderou uma visita rápida ao Ulster Folk & Transport Museum, quanto mais não fosse, para mostrar às senhoras o DeLorean DMC-12, com carroceria em aço inoxidável, mais conhecido por ter sido o carro dos filmes “Regresso ao futuro”. Produziu-se em Dunmurry, nos subúrbios de Belfast. Mas optámos antes por desfrutar da cidade, eleita pelo World Travel Awards como o “2016 world’s leading tourist attraction” e, pelo Best in Travel da Lonely Planet, como o melhor destino para se visitar em 2018.

Capital e maior cidade da Irlanda do Norte, Belfast remonta à Idade do Bronze. Ganhou proeminência e afirmou-se como segunda cidade da ilha, atrás de Dublin, a partir do século XVIII. A Revolução Industrial teve aqui o seu expoente máximo (na Irlanda), com fábricas, tecelagens, cordoarias e estaleiros a induzirem uma era de grande prosperidade.

Há um século atrás, Belfast tinha os maiores estaleiros navais do mundo.

Aqui, foram construídos os maiores e mais luxuosos paquetes da época, o Olympic, o Titanic e o Britannic, todos para a White Star Line. Como navio de apoio e transporte de passageiros entre estes, à época, “gigantes dos mares” e os portos em que não podiam atracar (e.g., Cherbourg), construiu-se o luxuoso, mas mais pequeno, Nomadic. Restaurado a rigor, o Nomadic é visitável em doca seca. Aqui, também, foi construído o Glorious, considerado o primeiro navio porta-aviões do mundo.

A partir de meados do século passado a indústria pesada e naval de Belfast entrou em profundo declínio, arrastando consigo a cidade. Seguiram-se períodos de grande instabilidade social. Hoje assistimos a um esforço consistente de restauro do património histórico e de recuperação económica. A cidade está agradável e merece a visita. O World Travel Awards e o Lonely Planet tinham razão!










  








  





Fotos: Belfast.



Seguimos viagem com destino a Dublin. De permeio, uma visita ao Hillsborough Castle, residência do Secretário de Estado para a Irlanda do Norte e, também, residência oficial da Rainha Elizabeth II e dos membros da família real britânica quando em visita à região. Visita guiada por duas senhoras super atenciosas mas…, “very, very British”!







Fotos: Hillsborough Castle.


Já nas Midlands da Irlanda, fizemos um pequeno desvio para visitarmos os túmulos de Newgrange, Knowth e Dowth, em Brú na Bóinne. Datados de cerca de 3.200 A.C. (1.000 anos mais antigos que Stonehenge), fazem parte da lista do Património da Humanidade, da UNESCO. Infelizmente, não nos foi possível visitar o interior.

É sempre um mistério para nós, o nível de conhecimentos astronómicos destes povos do Neolítico. Por exemplo, no túmulo maior, o Newgrange, há um orifício rectangular sobre a entrada por onde, na manhã do solstício de Inverno, os raios de Sol entram e iluminam a câmara central, no fundo de uma galeria de quase vinte metros! Também os conhecimentos de engenharia espantam o comum dos mortais. A construção é bastante grande, manteve-se estanque durante mais de 5.000 anos e, só para a cobertura, foram necessárias 200.000 toneladas de pedras… Isto numa época em que ainda não tinham sido inventados, nem os objectos de metal, nem a roda! O Newgrange foi a maior edificação de toda a Irlanda até às construções dos castelos pelos povos Anglo-Normandos…, 4.000 anos mais tarde!





Foto: Túmulo de Newgrange.


Chegámos a Dublin no final da tarde, quando as barreiras policiais e os impedimentos à circulação automóvel já estavam quase todas removidas. Mesmo assim, ainda tivemos de dar umas quantas voltas até conseguirmos chegar à zona de Temple Bar, que seria a nossa “base” nos próximos dias.

Decorria o “World Meeting of Families” e Sua Santidade, o Papa Francisco, estava em Dublin. No sábado fez uma visita à cidade e, no domingo, celebrou a Santa Missa no Phoenix Park.

Dublin é a capital e a maior cidade da Irlanda. Embora Ptolomeu se lhe refira no ano 140, o que pressupõe a sua existência (e dimensão) desde tempos ancestrais, assume-se que terá sido fundada pelos Vikings no século IX. Chegou a ser a segunda maior cidade do Império Britânico e a quinta maior da Europa, no início do século XVIII.

A “Grande Fome”, entre 1845 e 1848, foi o período mais negro da história de Dublin e de toda a ilha. Estima-se que morreram um milhão de irlandeses e que tiveram de emigrar mais de dois milhões. O monumento na margem do rio Liffey tocou-nos a alma. O ressentimento contra os ingleses, que pouco fizeram para minimizar o sofrimento destes povos, perdura até hoje. Percebe-se porquê.

Actualmente, Dublin é o principal centro cosmopolita, intelectual, cultural, histórico, industrial e económico do país. Uma cidade muito agradável, com gente das quatro partidas do mundo, que não nos faz, nunca, sentir estrangeiros.

Começámos pelo incontornável Trinity College, com uma visita guiada por um estudante de doutoramento em filosofia. Impressionante, a história (e as histórias!) desta universidade! Impressionante também a sua biblioteca, com os seus três milhões de obras!

Depois… Bem, depois tudo se consegue visitar a pé e foi um deambular por Dublin, sentindo a cidade, os seus bairros medievais e georgianos, a sua arquitectura, a sua história e as suas gentes. Foi um visitar de monumentos e instituições, algumas que já havíamos seleccionado no planeamento desta viagem, outras não. E claro, não pudemos deixar de aprofundar os nossos estudos culturais dos pubs irlandeses, com os devidos estágios no “The Porter House Temple Bar” (o primeiro a produzir a sua própria cerveja), no “The Brazen Head” (o pub mais antigo da Irlanda) e no “The Bank” (premiado pela Licenced Vintners Association como o “The best pub with food” em 2017), entre outros. Mesmo nestes tempos radicais, em que pontificam os batidos “verdes” e as Apps de monitorização do corpo, o pub mantém-se como o “alfa e o ómega” da interacção social na cidade… e em toda a Irlanda! É a verdadeira “rede social”!

Entretanto, casa cheia no Gaiety, o teatro mais antigo da Irlanda, para assistir ao espectáculo dos RiverDance!  

“… A visit to Dublin is not complete without experiencing the energy, the sensuality and the spectacle of RiverDance at the beautiful Gaiety Theatre…” – in http://www.RiverDance.com

Nem mais!









  
  




  






  



  
  


  







  



  
  

  
















Fotos: Dublin.


O regresso a Cork contemplou uma demorada travessia das montanhas Wicklow, do Wicklow Mountains Natural Park e do seu vale de Glenmacnass. Paisagens fantásticas, passagens de montanha e estradas estreitas e sinuosas (que quase não aparecem nos mapas!), entre elas uma antiga Estrada Militar, com autênticos miradouros a cada curva. Voltávamos à essência natural da Irlanda.

Já a caminho das vias principais que ligam a Cork, mas ainda naquelas estradas estreitas, a minha mulher fechou um pouco os olhos, para logo os abrir, passados três ou quatro minutos. Um cruzamento. Uma operação STOP. Do outro lado, um polícia mandava parar um carro para inspecção de documentos… Nós, estávamos parados, de janela aberta, com um polícia de cotovelo apoiado na janela em amena cavaqueira comigo e com a nossa filha! A fazer o seu trabalho, claro.

- Quem éramos / De onde vínhamos / “Vieram no ferry?! E o mar?” / Por onde tínhamos andado / O que tínhamos gostado / “Também foram à Irlanda do Norte?” / Onde íamos ficar, em Cork / “É óptimo! Já lá estive de férias com a minha mulher e os miúdos!” / Elogios a Portugal / Votos de continuação de boa viagem / “E que o mar esteja bom!” / …

É impossível não gostarmos da Irlanda e dos irlandeses!







  





Fotos: Wicklow Mountains Natural Park.


Uns amigos nossos que tinham estado em Cork duas semanas, disseram-nos que só tinham conseguido ter Sol a sério… no último dia.

Pois! No dia em que embarcámos de regresso ao Continente, lá estava um céu azul e um Sol resplandecente! Até o Poseidon se juntou à festa e nos presenteou com um autêntico “mar chão”!

Ficámos com vontade de regressar! Como sempre que chegamos a casa depois das nossas viagens.

À parte a meteorologia, “que é o que é”, adorámos a ilha e as suas gentes! No entanto, de tudo o que vimos nas “duas irlandas” (e é tudo de imensa beleza!), os campos, as falésias, as estradas panorâmicas, os parques naturais, os montes e os vales glaciares das províncias de Connemara e do Donegal, encantaram-nos completamente! Provavelmente, as zonas mais belas de toda a ilha. E as menos visitadas também.

Com a viagem deste ano acrescentámos mais um país ao curriculum vitæ do Pantera Negra. Trinta países visitados em vinte e quatro anos e 375.000 km de bons e fiéis serviços… Portugal de lés a lés, Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grão-Ducado do Luxemburgo, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Islândia, Letónia, Lituânia, Marrocos, Noruega (onde fomos até ao Cabo Norte), Polónia, Principado de Andorra, Principado do Liechtenstein, Principado do Mónaco, Reino Unido (+ Gibraltar + ilhas Hébridas + Irlanda do Norte), República Checa, Suécia, Suíça…

Há que actualizar o autocolante!


Go raibh maith agat !!!






      Luís de Matos
   (Setembro de 2018)