Texto:
Luís de Matos
Fotos: Luís
de Matos, Maria José Lopes
e Ana Sofia Matos
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Fotos: Trajecto
Faltava-nos
a Irlanda!
Apesar de
ser relativamente próxima, a verdade é que os bons ventos nunca nos tinham
levado para este país. O mais próximo que tínhamos estado, em 2010, havia sido
na Escócia e nas ilhas Hébridas de Skye, Harris e Lewis. Olhando para o mapa
das viagens familiares que já tínhamos realizado a bordo do Pantera Negra, a
"Ilha Esmeralda" quase que nos pedia para a visitarmos!
Entretanto,
este ano e após quase uma década de ausência de ligação directa, voltou a
existir uma ligação de ferry-boat entre o Norte de Espanha (Santander) e a
Irlanda (Cork). O navio Connemara já terá tido melhores dias e o serviço estava
classificado de (mesmo!) bastante básico, mas teria de servir… Não havia outro!
Pois!
Esgotadíssimo, mesmo com meses de antecedência… A alternativa mais interessante
seria a de se fazer o trajecto via Roscoff, na Bretanha, que tinha uma ligação
directa com Cork. Do mal, o menos. Sempre nos permitiria revisitar alguns
pontos emblemáticos de viagens anteriores, como La Rochelle, Saint-Malo e o
Mont-Saint-Michel. Visitas sempre gratificantes! Para além de que o navio dessa
ligação, o Pont Aven, era muito melhor! No trajecto de ida... Que no de
regresso, era na mesma o tal Connemara... Pois! Esgotadíssimo, mesmo com meses
de antecedência! Parecia impossível!
Mais umas
quantas (muitas!) iterações com a Brittany Ferries (super profissionais e
sempre simpáticos), e lá conseguimos passagens e cabine para os dois trajectos,
no Connemara... Voltávamos aos planos iniciais: "Santander >>>
Cork >>> Santander"!
Já na
Irlanda, havia que encaixar tudo o que se queria ver e fazer entre as datas de
chegada e partida do dito ferry-boat. Uma semana apenas! Um exercício de
compromisso, em que muito ficaria, necessariamente, por ver e fazer. Ainda
estamos para perceber alguns amigos que nos afiançavam que, "em dois ou três dias vêm aquilo tudo".
Nem de perto, nem de longe! Um país a revisitar com mais tempo, por certo!
Voltávamos
aqueles países de estradas estreitas, e condução "do lado errado da
estrada"! Optámos por fazer o trajecto no sentido dos ponteiros do
relógio. Começámos pelo Ring of Kerry e, claro, por uma há muito planeada
visita ao Mosteiro do rochedo de Skellig Michael. Só que o pessoal dos filmes
da série Star Wars também deve ter visto os mesmos velhos documentários do
National Geographic e, "bora lá filmar
umas cenas maradas lá no cimo"... Passou quase a atracção número um do
país e, claro, tudo esgotado com meses de antecedência! Avançou-se com o já bem
afinado “procedimento das muitas iterações com os nativos"... e lá
conseguimos três lugares no Mary Frances. É que as autorizações de desembarque
na ilha são limitadas e só um reduzido número de pequenas embarcações de pesca
tem autorização de atracagem. Com a súbita popularidade granjeada pelo Star
Wars..., não chegam para as encomendas!
Continuamos
pela Península de Dingle, subindo a Wild Atlantic Way até ao Donegal, e
descendo depois pela Coastal Road da costa Leste, de novo até Cork. De permeio,
uma incursão à Irlanda do Norte… Antes que as turbulências do Brexit tornem a
coisa mais complicada.
Em
Dublin, fim-de-semana de Missa Papal, integrada no "World Meeting of
Families"! E planos para o reencontro com amigos que mudaram para lá as
suas vidas profissionais.
Algures
nos anos noventa do século passado, um amigo, Keith Gavins, à época o Chefe da
Central Termoeléctrica do Pego, havia-nos emprestado uma cassete VHS com
actuações dos RiverDance. A primeira aparição dos RiverDance, então apenas uma
produção, ocorreu num intervalo do Festival da Eurovisão de 1994, em Dublin.
Fez sucesso e, de uma simples produção para preencher um pequeno intervalo,
desenvolveu-se todo um espectáculo grandioso.
Não
conhecíamos aquele género de danças Célticas e ficámos fascinados. Ora, nem a
propósito..., os RiverDance (entretanto tornados famosos e mundialmente
conhecidos) actuavam por estas alturas em Dublin! Bingo!
Os guias
de viagem da American Express e da Lonely Planet têm fama de ser os livros mais
optimistas e positivos do mundo! Neste caso, acreditamos que pecam por defeito…
"… a popularidade da Irlanda como destino turístico é assegurada pela
profunda herança cultural, pelas paisagens deslumbrantes e pelas pessoas. As
ruínas Celtas, os fortes medievais e as casas imponentes, que salpicam a
paisagem, dão à ilha um ar majestoso..." - in American Express.
A Irlanda
é mais um daqueles países que, muito provavelmente, também poderíamos vir um
dia a chamar de "segunda pátria". Está-se bem na Irlanda!
Bíodh turas deas agat!!!!
Quando nos esquecemos de avisar o Poseidon…
Sair
razoavelmente cedo e atravessar Espanha é já algo a que nos habituámos. Uma ou
outra variação nas paragens e no poiso para almoço, mas, a verdade é que o
trajecto é sobejamente conhecido. Procuramos pois devorar quilómetros e
aproveitar o final da tarde e a noite para descansar e desfrutar do “ponto de
escala”. O ferry-boat zarpava apenas no dia seguinte a meio da tarde.
Só
tínhamos ainda tido a oportunidade de cruzar Santander uma vez, quando
visitámos Santillana del Mar e as grutas de Altamira, Património da Humanidade,
pela UNESCO.
Capital
da Cantábria, a cidade encantou-nos pela sua história rica, que remonta ao
século I A.C., pela sua dinâmica, pela sua gastronomia e pelas suas gentes,
calorosas e acolhedoras. O grande incêndio de 1941 destruiu praticamente toda a
área de traça medieval, de elevada densidade populacional. A reconstrução que
se lhe seguiu, reflectiu a urgência e as limitações financeiras.
O turismo
também redescobriu Santander e o movimento é permanente e bastante positivo.
Claro que existe sempre uma alimária que, mesmo quando estamos a enquadrar para
fotografar os Raqueros, se coloca à nossa frente a tirar fotografias de vários
ângulos, se senta junto das estátuas, tira várias selfies com cada uma delas,
desfruta cada momento vagarosamente… Confesso que tive uma vontade quase
irresistível de pegar naquele idiota pelos fundilhos e lança-lo à água! Mas
aguentei-me, claro!
No último
século e meio, o impacto positivo que as cinco gerações da família Botín por aqui
tiveram (e continuam a ter) é impressionante. Assim como impressionante e
plenamente justificado, é o respeito e carinho que lhes nutre toda a população!
Fotos: Santander.
Roteiros “turístico-histórico-cultural-gastronómico-copofónicos” da praxe realizados, e era hora de nos dirigirmos ao porto, mesmo em frente ao hotel. Aquilo estava tudo em obras e, claro, entrámos pelo lado errado, pelo que até há pouco tempo teria sido o acesso rodoviário habitual… Paciência e simpatia do pessoal do porto e da polícia local…, e lá nos abriram os portões de serviço, para que não tivéssemos de ir dar uma volta de quilómetros. Muchas gracias!!! Escusado será dizer que, desde ali até ao barco, toda a gente nos conhecia e ao Pantera Negra!
O Connemara é um navio relativamente recente, com apenas uma dúzia de anos, e não muito grande. Tem uma tonelagem bruta de cerca de 27.000 toneladas. Bastante menos que as 38.000 toneladas do Pride of Bilbao (viagem à Escócia) e que as 36.000 toneladas do Norröna (viagem à Islândia)…, o que o torna mais “ágil”, potenciando a experiência de “sentir bem o mar”. Para melhorar a dita “experiência”, o nosso camarote era na vante do navio, logo abaixo da ponte de comando (procuro marcar os camarotes sempre a “meio navio”, a zona mais estável, mas desta vez foi que se arranjou). Entretanto, as previsões meteorológicas não eram nada animadoras e vimos o pessoal de serviço a calçar firmemente todas as rodas dos veículos embarcados… Depois, o Comandante também alertou para o estado do mar, mas sempre dizendo que iriam utilizar as alhetas estabilizadoras para tornar a viagem o menos desconfortável possível… Bem, a coisa já devia ser habitual, pois nunca em nenhum dos navios em que já viajámos, havíamos visto tantos suportes com os “sac mal de mer”…, “sea-sickness bag”…
Pois! Alguém se esqueceu de avisar o Poseidon de que íamos cruzar o Golfo da Biscaia e o Mar da Irlanda. O dito estava de “sobrolho carregado” e a viagem preparava-se para ser agreste! E foi!
A baía de Santander está considerada uma das mais belas do mundo. De inegável beleza, sem dúvida, mas algo exagerada esta classificação. No regresso, depois de uma bem diferente viagem marítima, com “mar chão” e sol, já a achámos mais bonita!
Fotos: Connemara.
Pela “Wild Atlantic Way”, mais uma “Drive of
a Lifetime”…
Atracámos
ao final da tarde em Cork, zona onde a farmacêutica Pfizer tem, desde 1997, uma
instalação onde se fabrica um muito famoso “comprimido azul”. Dizem os mexericos
locais que, devido aos fumos da dita fábrica, “… even the dogs walk around with rock-hard …, thanks to the Viagra plant… (in the Cork village of Ringaskiddy)”! Um potencial paraíso para a
“terceira idade”, portanto! Não chegámos a ir a Ringaskiddy.
Os tempos
são outros e as épocas áureas das grandes indústrias estão a passar (Cork até
fábricas de automóveis teve, ou o avô de Henry Ford não fosse um irlandês, de
Cork!). Ainda assim, a zona mantém a sua pujança e fortes apostas nos estudos e,
consequentemente, no trabalho de qualidade. Empresas como a Pfizer e a
Novartis, a Apple e a EMC Corporation, a Amazon e a Motorola, entre outras,
mantêm forte presença na zona.
Percebemos
que chegávamos à terra do “abre guarda-chuva, fecha guarda-chuva” ou, numa
abordagem mais ágil… “põe capuz, tira capuz”. Isto a meio do Verão! O ser
humano habitua-se a tudo, claro. Daí a gostar, vai uma grande diferença! E a
meteorologia que nos recebeu durante todo o tempo em que andámos pela Irlanda
não se pode dizer que tenha sido grande coisa. Conseguiu ser pior do que a que experimentámos
nas nossas viagens à Escócia, ao Cabo Norte e à Islândia! Dito isto, ainda
assim e segundo o “pessoal da terra”, parece que tivemos bastante sorte com o
tempo!
Dizer que
fomos bem recebidos em Cork, é pecar por defeito. Fomos mesmo muito bem
recebidos! Aqui e em toda a ilha. Não apenas pelos irlandeses, como por toda a
gente. O ambiente é cosmopolita e, caso disso não nos tivéssemos apercebido ao
deambular pela cidade, o tirocínio realizado nos “pubs” teria sido esclarecedor.
Havia gente de todas as partidas do mundo, da Austrália ao Canadá! Gente de
todas as idades, divertida e bem-disposta. Quanto ao que aquela malta consegue
emborcar… fiquei estarrecido! Como nunca fui aos “treinos”, lá acompanho a
refeição com uma caneca. A segunda já é só mesmo para parecer bem… Na primeira
noite em Cork, numa mesa próxima estava uma família numerosa… já com umas
quantas canecas vazias. Durante a refeição, enquanto eu me esticava o melhor
que podia nas duas canecas, só a matriarca dessa família virou três! E, quando
saímos, faziam menção de continuar… Ok! Quando for grande…
Como
muitas cidades irlandesas de hoje em dia, Cork iniciou-se em torno de um centro
monástico. Neste caso, o mosteiro de São Finbarr, do século VI. Quatro séculos
depois, acabariam por ser os Vikings que, a par de todo o sofrimento causado
pelas suas incursões e barbárie, promoveriam a transformação do povoado numa
urbe de alguma dimensão, com um importante porto. Das muralhas que protegeram a
cidade durante séculos, pouco chegou aos nossos dias. Quase sempre uma “cidade
rebelde”, o apoio a facções, ora vencedoras, ora perdedoras, ditaram muito da
sua história… e das suas reconstruções! A pujança das suas gentes sempre foi
referencial e, como já referido, as últimas décadas viram fixar-se na zona
muitas empresas nacionais e internacionais, quer da “velha” economia, quer da
“nova”.
A “real capital of Ireland”, como por ali
se lhe referem, não desiludiu, portanto. A segunda cidade do país vale uma
estadia demorada. Num misto de estilos, percebe-se que a crise financeira da
última década fez a sua moça. Mas a cidade está a desenvolver-se e a
reinventar-se economicamente, com muitas e dinâmicas empresas um pouco por todo
o lado, assim como uma consistente e visível aposta na recuperação e
embelezamento das suas zonas mais históricas e ribeirinhas. Nem sempre é fácil
conseguir conciliar o charme tradicional com o necessário desenvolvimento e
modernismo. Cork pareceu-nos um excelente exemplo de sucesso nesta demanda.
As zonas
mais interessantes situam-se numa ilha entre dois braços do rio Lee mas, de
qualquer das formas, praticamente tudo é visitável a pé. Foi o que fizemos, de
mapas e guias AMEX na mão.
Claro,
não deixámos também de espalhar magia pela cidade com a nossa “actuação” aos
comandos do carrilhão da igreja de Santa Ana. Do campanário tem-se uma vista
soberba sobre a cidade e, ok…, o mecanismo de accionamento dos ditos “Shandon
Bells” está disponível para o público poder fazer uma gracinha. Deve ser
tramado viver nas proximidades…
Gostámos
de Cork!
Fotos: Cork.
Se outro motivo não surgir para um regresso, a visita à destilaria antiga da Jameson (numa povoação próxima) e ao Jameson Heritage Center será sempre tentadora. No eterno “deve e haver” do viajante, a tentar encaixar no escasso tempo disponível tudo o que se deseja ver, optámos por deixar a destilaria para “outras núpcias”. Até porque já tínhamos visitado a destilaria da Talisker, na ilha de Skye.
Seguimos
pela estrada que atravessa as Derrynasaggert Mountains rumo Killarney e, daí,
para a primeira parte do chamado Ring of Kerry, na península de Iveragh.
A zona de
Killarney e do Killarney National Park é, por assim dizer, uma máquina
turística. Sempre que uma “escapadinha” o permite, Dublin e Cork esvaziam-se
para aqui. Muito especialmente no Verão. Pode-se ter de conduzir horas em
“pára-arranca”, atrás de autocarros vintage e carroças turísticas. A que se
soma mais gente de bicicleta, mais gente a pé…, em estradas
estreitas e quase sem bermas.
Fizemos o
percurso em sentido inverso ao dos turistas, com excelente resultado! Uma
prática que nos tinham aconselhado, quando da preparação desta viagem, e que
aplicámos sempre que viável! Ainda assim, optámos por não atravessar o Gap of
Dunloe, que estava “entupido” de trânsito. Seguimos pela ligação de montanha a
Kenmare, com as devidas paragens, “lunch with a view” e o tal cafezinho da nossa
Handpresso Auto na zona do Moll’s Gap, a que se seguiu mais um doce e outro
café no Avoca Cafe, como manda a tradição!
O Killarney
National Park foi declarado Reserva da Biosfera, pela UNESCO e, entre muitos
encantos, tem os últimos Veados Vermelhos selvagens da Irlanda.
Fotos: Killarney National Park
A partir de Kenmare continuámos pelo lado Sul da península de Iveragh, junto à costa, via Sneem, Caherdaniel e Waterville, até Portmagee. O trajecto mais visitado da Irlanda acabou por não ter muito trânsito. Era domingo à tarde e a maioria do pessoal já tinha regressado às cidades. Por outro lado, a meteorologia estava miserável… Quase que não deu para tirar fotografias aos recortes da costa e o miradouro da Coomakista Pass estava “escondido dentro das nuvens”.
Estávamos
em plena Wild Atlantic Way, 2.600 km de estrada panorâmica ao longo da costa
Oeste da Irlanda. É considerada uma das mais longas estradas costeiras do
mundo. Começa na povoação de Kinsale, próximo de Cork, e segue até à península
de Inishowen, no Norte da ilha, terminando em Londonderry.
“…The
Wild Atlantic Way is the world's longest defined coastal touring route. It's
inspiring, renewing, relaxing and invigorating. It's yours to experience
however you choose (…) a sensational journey of soaring cliffs and buzzing
towns and cities, of hidden beaches and epic bays (…) In the isolation or
perhaps expressed in a different way living near and with the Atlantic at your
doorstep has ensured that old traditions and the Irish language have been
preserved. A trip along the Wild Atlantic Way is also an encounter with the
past (…) So, whether you drive it from end-to-end, or dip into it as the mood
strikes, it's going to be a once-in-a-lifetime experience…” – in http://www.theWildAtlanticWay.com
Entrávamos
no silêncio das paisagens quase desertas (mesmo no Verão!), a par daquele
especial encanto dos cenários bucólicos. Um caminho quase sempre à beira-mar,
numa Europa um pouco mais profunda.
As
“danças das datas” das viagens de ferry-boat para a Irlanda deixaram de fora o
plano inicial de assistirmos ao “Charlie Chaplin Comedy Film Festival”, que se
realiza no final de Agosto, em Waterville. Durante muitos anos, Charlie Chaplin
e a família passaram aqui férias. Ficou a ligação e a homenagem da vila ao
génio do filme mudo. Pela nossa parte, uma respeitosa fotografia à sua estátua,
junto à praia. Uns metros ao lado, a estátua de um "filho da terra". Michael O'Dwyer, estrela da gestão do futebol gaélico dos anos setenta e oitenta do século passado.
Foto: Caherdaniel.
Fotos: Waterville.
E chegávamos a Portmagee, uma povoação com uma única rua (ou quase isso), que foi a base de um dos pontos altos da nossa viagem, a visita a Skellig Michael, Património da Humanidade, pela UNESCO!
Fotos: Portmagee.
Como
combinado (já há largos meses!), mal chegámos, falámos com o Nealie Lyne,
capitão do Marry Frances, a saber das previsões meteorológicas para o dia
seguinte de manhã… Ok! À partida e se o tal Poseidon não passasse muito mal a
noite, teríamos condições de navegação até aos rochedos, assim como condições
de ir a terra em Skellig Michael! Yes!!!
É que,
desde há três dias que nenhuma embarcação conseguia sair do porto, devido ao
estado do mar… Compreendemos bem o “filme”. Tínhamos feito esse mesmo mar, há
dois dias, a bordo do Connemara.
O rochedo
de Skellig Michael (assim como o mais pequeno e não visitável Little Skellig)
fica apenas a uma dúzia de quilómetros da costa. Esconde um dos mais bem
preservados exemplos de edificações monásticas primitivas, Cristãs, em zonas
remotas e inóspitas. Ambos os rochedos são, também, importantes reservas
naturais. Os acessos são restritos e levantam-se importantes questões de
segurança, devidamente alertadas e explicadas pelos responsáveis das visitas. É
que tem morrido gente, naquelas escarpas.
Diz-se
que o Arcanjo São Miguel aqui terá aparecido a São Patrício e o terá ajudado a
expulsar as serpentes marinhas do Mar da Irlanda… Daí o nome. As lendas do
folclore irlandês apontam contudo para que o rochedo fosse conhecido e
utilizado pontualmente desde tempos pré-históricos. Mais recentemente, por
volta do ano 1.400 AC, aqui terá sido sepultado o capitão de um navio, após um
naufrágio.
Não se
sabe exactamente quando os monges aqui se estabeleceram em permanência. Há um
oratório dedicado a Santo Agostinho e datado do século V, mas assume-se que foi
só no século VI (pelo ano 588) que São Finnian de Clonard aqui lançou, no
topo do rochedo, as bases de um estabelecimento monástico. Nos seis séculos seguintes,
os monges foram construindo oratórios, celas, cisternas, acessos, escadas,
muros, hortas, cemitério e tudo o que hoje ainda se pode contemplar. Sempre no
maior isolamento e privação, e sujeitos aos ataques de piratas e às incursões
dos Vikings. Um marco de Fé. Para quem vivia no “interior”, estes monges eram
Homens Santos.
Já na
zona do mosteiro, um guia deu-nos uma autêntica aula de história, sobre o local
e a sua evolução física, sobre o seu significado na chegada e expansão do
Cristianismo e, consequentemente, na sua influência no desenvolvimento e
crescente alfabetização de terras tão remotas, que ultrapassavam as fronteiras
dos impérios de então.
Descemos
os seiscentos e dezoito degraus das escarpas num certo recolhimento
interior. Se, por um lado, a paisagem era avassaladora..., por outro, não
conseguíamos deixar de pensar naqueles monges e na grandeza da sua Fé.
O capitão
Nealie Lyne e o filho aguardavam-nos a bordo do Marry Frances. Entretanto, chegou
uma equipa da BBC / National Geographic, com centenas de quilos de equipamento…
e dezenas de jerrycans de água potável! Vinham fazer um documentário sobre
Skellig Michael. Só de pensar que iam ter de alombar com aquilo quase tudo até ao
topo do rochedo, fazia arrepios…
Para quem
não conseguir (ou não puder) fazer uma “Skellig Michael landing tour”, deixamos
a sugestão de visita ao Skellig Experience Centre, junto à estrada que liga à
ilha de Valentia, com uma exposição audiovisual sobre a construção e história
do mosteiro. Mas não é a mesma coisa…
Seguimos
viagem para a zona Noroeste do Ring of Kerry. Paisagens fantásticas e praias
óptimas para se andar encasacado, mesmo no pino do Verão!
A
passagem sob o desactivado viaduto ferroviário de Gleensk, fez-nos recordar
algumas vias ferroviárias portuguesas de rara beleza…, mas também desactivas
nos dias que correm. Este viaduto fazia parte da Great Southern and Western
Railway Line, considerado um dos mais belos trajectos ferroviários do mundo. Sobreviveu
mais de um século. Foi, até, atracção turística. Está desactivado há vários
anos. Pois…
Quase não
vem nos guias e passa, muitas das vezes, despercebida. Paragem breve, portanto,
em Killorglin, nas margens do rio Laune, mesmo à porta da península de Dingle.
Despertou-nos a curiosidade a sua Puck Fair, reconhecida mundialmente, segundo
os nativos. É um dos festivais mais antigos do país e a sua origem perde-se na
noite dos tempos. Muito provavelmente, terá as suas raízes em celebrações
pagãs, relacionadas com o ciclo das colheitas, em que o bode, o tal “Puck”, era
o símbolo da fertilidade. Três dias de “festa rija”, a 10, 11 e 12 de Agosto,
todos os anos!
Já na
península de Dingle, desviámos para a Inch Strand, que havíamos avistado ainda
do outro lado da baía.
Em
Portugal, essencialmente por questões ambientais e de segurança, não é
permitida a circulação de veículos particulares nas praias. Em muitos países,
contudo, essa restrição não existe ou, pelo menos, tem zonas de excepção
perfeitamente delimitadas. É o caso.
A Inch
Strand é uma língua de areia com cerca de meia dúzia de quilómetros que actua
como um molhe natural para os portos de Cromane e de Castelmaine. Seguindo o
trilho, não há surpresas, nem é necessário mexer na pressão dos pneumáticos. A
areia é firme e, com a meteorologia lá da terra, até um carro ligeiro se safa.
As vistas valem a pena e, confessemos, até já tínhamos algumas saudades de
conduzir em praia (a última vez tinha sido na Plage Blanche, há uma década
atrás!).
A península de Dingle é um dos trajectos mais conhecidos da Wild Atlantic Way. Como cereja em cima do bolo, percorremos a famosa Slea Head Drive, uma daquelas “Drives of a Lifetime” da National Geographic, da Top Gear…, e da Dangerous Roads também.
Fotos: Cahersiveen.
Fotos: Gleensk.
Fotos: Killorglin.
Fotos: Inch Strand.
Foto: Annascaul.
Fotos: Dingle.
A península de Dingle é um dos trajectos mais conhecidos da Wild Atlantic Way. Como cereja em cima do bolo, percorremos a famosa Slea Head Drive, uma daquelas “Drives of a Lifetime” da National Geographic, da Top Gear…, e da Dangerous Roads também.
Num
eterno jogo de “esconde-esconde” com o nevoeiro, a chuva e os esquivos raios de
Sol, percorremos todo o circuito de cerca de meia centena de quilómetros,
começando em Dingle e terminando… em Dingle. E sempre no sentido contrário ao
dos turistas!
O
percurso foi magnífico, com vistas espectaculares para os recortes da costa,
ilhas próximas e para a montanha. Atravessámos uma das zonas do país com a
maior concentração de monumentos antigos, fortes, estruturas megalíticas,
estabelecimentos Cristãos primitivos e antigos caminhos de peregrinação.
Especial curiosidade
despertou-nos a área dos Beehive Huts, um género de fortes em pedra seca, sem
qualquer tipo de argamassa, de planta mais ou menos circular, na zona de Fahan.
Pensa-se que terão sido construídos no início da era Cristã e que funcionariam,
cada um, como estrutura de habitação, armazém, abrigo e defesa para uma família
e respectivo gado. Alguns têm, inclusive, ligações entre eles. Terão sido
habitados até por volta dos séculos XII ou XIII. Também construído em pedra
seca, o Gallarus Oratory foi outra das construções dessa época (acredita-se que
tenha cerca de 1.300 anos), que nos impressionou. É o mais bem preservado
oratório dos primeiros tempos da Cristandade na Irlanda, tendo sobrevivido às
invasões Vikings e Normandas, que arrasaram quase todas as construções da zona.
Ainda se mantém impermeável à chuva!
Antes de
regressarmos a Dingle, ainda visitámos a ponta de São Brandão, o Navegador,
onde uma estátua evoca a viagem deste Santo até à América, por volta do ano
520. Difícil de encontrar! Os mapas que tínhamos eram muito pouco precisos e,
por incrível que parecesse, os nativos a quem mostrávamos, quer os mapas, quer
fotografias do que procurávamos…, ou não faziam a mínima ideia, ou davam-nos
informações contraditórias! Mas demos com o sítio.
É curioso
que, à medida que subimos na latitude, quase todos os povos têm sempre alguém
que chegou à América do Norte em primeiro lugar… Aqui na Irlanda, na Noruega,
na Islândia…, encontrámos sempre referências a navegadores que atravessaram o
Atlântico Norte antes de todos os outros! Mantenho a preferência por Cristóvão
Colombo, português de Cuba, ao serviço de D. João II, que, como espião,
trabalhou para os Reis Católicos e descobriu a América em 1492. Porquê? Para
desviar as atenções da coroa espanhola do objectivo português de descobrir o
caminho marítimo para a Índia, contornando África (concretizado por Vasco da
Gama, em 1497-1498, já no reinado de D. Manuel I).
Fotos: Slea Head Drive.
Fotos: Slea Head Drive - Fahan.
Fotos: Slea Head Drive - Dunquin.
Fotos: Slea Head Drive - Clogher Head.
Fotos: Slea Head Drive - Gallarus Oratory.
Fotos: Slea Head Drive - Ballydavid.
Foto: Slea Head Drive - Ponta de São Brandão, o Navegador.
Voltámos
à encantadora cidade de Dingle e, daí, demandámos o Connor Pass, a mais elevada
passagem de montanha da Irlanda. Mais uma daquelas estradas estreitas, à beira
de penhascos, que serpenteiam entre sucessões de miradouros, cada qual com as
vistas mais impressionantes. No pequeno espaço de estacionamento do miradouro
principal, até uma carrinha de gelados ansiava por fazer as delícias dos
viajantes! Ansiava apenas… É que as nuvens estavam tão baixas que, às vezes,
quase não se via a vinte metros de distância. As famosas vistas, pois… Ficámos
a imaginá-las! Desta feita, o tradicional “lunch with a view”, foi sem a “view”.
Entretanto,
desde a saída de Dingle que a sinalização alertava para que a estrada era muito
estreita e sinuosa e proibia a passagem de veículos com mais de 1,80 m de largura…
O Pantera Negra é mais largo do que isso! Fomos avançando com o devido cuidado
e tomando nota dos pontos em que ainda poderíamos fazer inversão de marcha. A
estrada mantinha-se estreita, muito estreita e sinuosa. Em alguns pontos, a
parede de rochas limitava também a altura máxima permitida (nem pensar em andar
ali com uma auto-caravana!). A dada altura, os sinais de proibição passaram a
estar virados para o “outro lado”. Uf! Já tínhamos passado o “estreito”!
Fotos: Connor Pass.
Olhando
para o mapa e sabendo que íamos pernoitar em Limerick, era como se ainda
estivéssemos no início da viagem do dia… Havia que nos fazermos à estrada, com
tempo para uma visita a Tralee, cidade importante do condado, onde lanchámos
divinalmente e até demos um ar de miúdos nas diversões da feira lá do burgo. Isto
no último dia do Rose of Tralee International Festival, um importante evento
que, na terceira semana de Agosto, desde há mais de meio século anima a cidade.
Fotos: Tralee.
E tempo também
para uma paragem ainda mais demorada em Adare, para muitos, a povoação mais
bonita da Irlanda. Polícia em todo o lado, passeios cheios de gente e uma
moldura humana irradiando alegria, receberam-nos e ao Pantera Negra em Adare!
Pois… É
que o Limerick tinha vencido o Galway e ganho a Liam MacCarthy Cup, sagrando-se
All-Ireland Hurling Champions! Coisa que não acontecia desde 1973. Ainda para
mais, parece que este tinha sido considerado o melhor campeonato de Hurling de
toda a história deste jogo! No dia anterior, 90.000 pessoas em festa tinham
recebido os campeões em Limerick! E, porquê (perguntámos nós…) esta celebração,
aqui, em Adare? O capitão da equipa, o Declan Hannon era um “filho da terra” e
vinha nessa tarde, com toda a equipa, celebrar em Adare!
Entretanto,
a minha ignorância vinha ao de cima e eu não fazia ideia do que era isso do
Hurling… Explicaram-nos que era um jogo irlandês, de origem Celta e parecido
com o Hóquei em Campo, que rivalizava com o Rugby em popularidade. Duas equipas
de 15 elementos (leia-se, umas “locomotivas” do mesmo tamanho, ou maiores, do
que os tipos do Rugby…), procuravam colocar uma bola pequena, a "sliotar" (do
tamanho de uma bola de Ténis), na baliza adversária. Utilizavam para isso uma
espécie de tacos de madeira…, um género de cruzamento entre um cajado, um stick
de hóquei e um taco de golf. Desde 2010, o capacete com protecção da face
passou a ser obrigatório…
Fotos: Adare.
A manhã
seguinte levou-nos às famosas Cliffs of Moher, a atração natural mais visitada
da Irlanda, com cerca de um milhão de visitantes anuais. Devem também deter o
recorde irlandês de aparições em cenários de filmes!
São oito
quilómetros de falésias que, no seu ponto mais alto, atingem mais de duzentos
metros de altura (214 metros). Quase no topo, a torre de O’Brien é um miradouro
fabuloso, quer para as falésias, quer para as ilhas de Aran, para a baía de
Galway, para os Twelve Pins do Parque Nacional de Connemara, para as montanhas
Maum Turk e para a península de Loop Head.
Geoparque
Global da UNESCO e Zona de Proteção Especial, as Cliffs of Moher abrigam a
maior colónia de aves marinhas da Irlanda.
Fotos: Cliffs of Moher.
Seguimos
depois para Galway, para um almoço tardio (com grande pena nossa, o O’Connor’s
Famous Pub ainda estava fechado!). Em tempos, um porto importante nas ligações
marítimas entre a Península Ibérica e o Norte da Europa, Galway é hoje um porto
de escala para artistas, intelectuais e jovens nas suas deambulações pelo
mundo.
Contornámos
a baía, magnífica, e rumámos a Connemara. Continuámos a seguir a Wild Atlantic Way
e, à medida que avançávamos, sentíamos que nos embrenhávamos na Irlanda
profunda, em zonas de enorme beleza, mas muito menos visitadas.
Fotos: Galway.
Após a
vila piscatória de Clifden, com as suas casas pintadas de várias cores e uma
baía resplandecente, apesar do adiantado da hora, não resistimos a percorrer a
estrada panorâmica Sky Road, mais uma daquelas “Drives of a Lifetime” da
National Geographic, pouco conhecidas mas que, de per se, valem a viagem. Cerca de dezena e meia de quilómetros entre
paisagens únicas.
Fotos: Sky Road.
Lentamente,
a desfrutar da paisagem, continuámos pelos caminhos sinuosos do Connemara National Park, um autêntico caleidoscópio de paisagens deslumbrantes. Já era
noite quando chegámos a Wesport, para um merecido repouso… e para uma aturada
busca de um tasco em que pudéssemos fazer os devidos “reabastecimentos”. Aquela
hora, parece que só já se vendiam cervejas em todo o lado! A cidade é conhecida
pela sua dinâmica nocturna, e a coisa estava animada. Dentro dos pubs, claro, e
a começar pelo Matt Molloy’s, que, segundo os nativos, não é apenas mais um
pub, mas o melhor pub do mundo!. Fora dos pubs, Westport parecia deserta.
Fotos: Connemara National Park.
Quando
desenhámos este passeio, a etapa “Westport >>> Londonderry” era a mais
ambiciosa e a que mais decisões em “tempo real” iria requerer. Era uma etapa
algo longa, face ao que queríamos ver e fazer. Por outro lado, também queríamos
entrar na Irlanda do Norte ainda de dia. As negociações do Brexit andavam
demasiado acaloradas e, embora fosse pouco provável, nunca se sabia se, de um
momento para o outro, algum arrufo popular não provocaria dificuldades de
circulação.
Saímos
cedo e seguimos para Sligo, a terra do imortal poeta William Yeats, Prémio
Nobel da Literatura em 1923, centro de música tradicional e, para muitos, a
capital artística do Noroeste do país. Um amigo e colega, que em tempos por
aqui esteve, recomendou-nos a cidade e os arredores.
Um desses
arredores, a formação rochosa de Ben Bulben, pedia mesmo uma subida a pé. Pelo
lado Sul, que o lado Norte costuma ser complicado. As vistas do topo do
planalto são imbatíveis. Só que a subida levaria cerca de duas horas, mais umas
horas para deambular pelo planalto e voltar a descer… e, logo no plano inicial,
o Ben Bulben ficou destinado a ser visto apenas “cá de baixo”.
O outro
“arredor” de Sligo era a ilha de Coney, a que é possível aceder pela Cummeen
Strand na maré baixa… Um pouco na linha do que havíamos feito na Passage du
Gois, na ligação a Noirmoutier-en-l’Île. Pois, a maré estava alta e a tal Cummeen
Strand estava de “molho”!
Fotos: Sligo.
Rumámos
assim para o Donegal, com as suas falésias, costa recortada, montes, vales
glaciares e parques naturais.
A
província do Donegal tem as paisagens mais agrestes da Irlanda, mas é descrita
numa edição de 2017 do National Geographic Traveller como “the coolest place on
the Planet”. É também e muito provavelmente, a província mais pobre e menos
visitada do país. Questões históricas e geográficas ditaram um forte
isolamento. A província tem a maior percentagem de falantes de língua gaélica da
Irlanda e, na generalidade, a sinalização está em gaélico. Muitas das
indicações de distância estão ainda no Sistema Imperial, embora tenha sido
feito um significativo esforço na sua substituição pelo Sistema Internacional
(ainda que com alguns erros nas conversões…). As estradas, na sua maioria, são
bastante estreitas e o pavimento já viu melhores dias. É recomendável levar um
bom mapa local.
Depois de
uma rápida passagem pela cidade que dá o nome à província, seguimos para Oeste
até às Slieve League. Praticamente desconhecidas, face às Cliffs of Moher, as
Slieve League são quase três vezes mais elevadas. Com 601 metros de altura,
estão consideradas as falésias mais altas da Europa. O forte vento que se fazia
sentir voltou a oferecer o espectáculo da “chuva que sobe, em vez de cair”
junto à falésia. Já nas Cliffs of Moher havíamos sido brindados com o mesmo
efeito.
Logo após
o miradouro superior, o “mesmo muito estreito” trilho One Man's Pass convidava
a uma incursão até mesmo aos 601 metros do topo da falésia. Algo para tentar
apenas em dias sem chuva, nem vento. E mesmo assim…, costuma estar interdito.
Mas uma pequena caminhada de quinhentos ou seiscentos metros já permitia
atingir um patamar de vistas soberbas, sem ter de entrar na zona perigosa.
Continuámos via Glencolumbcille e Glengesh High Pass a deabular pelo Donegal e pelos seus parques naturais, com especial destaque para o Glenveagh National Park. A equipa da Land Rover Owner International tinha, há uns anos, andado por aqui e publicado um artigo com caminhos e sugestões. Nem a propósito! Como estávamos sozinhos, não corremos riscos desnecessários, mas ainda assim, atravessámos paisagens deslumbrantes e percorremos caminhos que nos ficaram na memória.
Fotos: Glencolumbcille.
Fotos: Glenveagh National Park.
Entrámos
na Irlanda do Norte sem quase disso nos apercebermos e, quando demos por ela,
estávamos em Derry, Londonderry para os britânicos… Num passado recente, a
instabilidade do território mantinha o turismo à distância. Com o cessar-fogo
de 1994 as coisas mudaram e o turismo é bem-vindo a toda a região.
Os mais
velhos recordar-se-ão ainda do que foi Londonderry há umas décadas. Felizmente
os tempos são outros e a cidade floresceu como um pilar cosmopolita de arte e
cultura. Que assim continue, e que Deus permita que insanidades como o Brexit
não venham a desenterrar os horrores do passado.
A Wild
Atlantic Way termina aqui, em LondonDerry, ao fim de 2.600 km a seguir os
recortes e caprichos da costa Oeste. Gostámos!
Pela “Coastal Road”, rumo a Sul…
Deixámos
Londonderry não muito cedo, como era o plano original, com destino aos dois
ex-libris da Irlanda do Norte, a Calçada dos Gigantes e a ponte de cabos de
Carrick-a-Rede.
Já
tínhamos visto este género de formações basálticas (quase todas) hexagonais em
vários sítios, desde os Açores, à Escócia e à Islândia. Mas a Calçada dos
Gigantes, Património da Humanidade pela UNESCO, com as suas 40.000 colunas
prismáticas, excede todos esses outros locais.
A
explicação científica, com as erupções vulcânicas de há sessenta milhões de
anos e a contracção (e solidificação) de sucessivos fluxos da lava basáltica ao
contactar com o ar ambiente muito mais frio, etc., é sobejamente conhecida… Mas não tem piada nenhuma! Gostámos
muito mais de ler as lendas irlandesas “oficiais”, que rezam mais ou menos
assim…
“… Era
uma vez, um gigante irlandês chamado Finn MacCool e um gigante escocês chamado
Benandonner. O irlandês, vai-se lá saber porquê, queria lutar com o escocês,
mas não havia nenhum barco suficientemente grande para o levar. Então, resolveu
construir uma calçada de pedra entre os dois lados. O gigante escocês,
Benandonner, aceitou o desafio e foi à Irlanda à procura do Finn MacCool para
lhe dar uma lição. Quando o irlandês percebeu que o escocês era muito maior do
que ele, pediu à esposa que o vestisse de bébé e que disse ao escocês que o
marido já vinha… Quando o gigante Benandonner chegou a casa do gigante Finn
MacCool e viu o bébé, pensou…
- ‘Se o bébé é deste tamanho, não quero
conhecer o pai dele!’
E fugiu
de volta para a Escócia, destruindo quase toda a calçada para evitar que o Finn
MacCool o perseguisse!...”
Muito
melhor, esta explicação!
Os
folhetos e mapas do National Trust complementavam bem as informações que já
levávamos e ilustravam vários circuitos de visita, uns mais fáceis, outros mais
difíceis... Fizemos o trilho “vermelho”, pois com certeza! Vistas magníficas!
Só que, quando ainda estávamos na zona da cumeeira, do nada levantou-se uma
ventania, acompanhada de chuva, que quase nos fazia “levantar voo”! O tal
trilho “vermelho”…
Fotos: Calçada dos Gigantes.
Continuando
pela Coastal Road, dirigimo-nos à ponte de cabos de Carrick-a-Rede.
Desde há
quase quatro séculos que os pescadores de salmão estendiam cabos e redes entre
o rochedo e terra firme, por forma a acederem aos melhores pesqueiros. Hoje,
existe uma ponte de cerca de vinte metros de comprimento, por um metro de
largura, suspensa a trinta metros do mar. A passagem não oferece dificuldade,
mas abana com o vento e, claro, impressiona q.b.. Em situações climatéricas
adversas, as autoridades responsáveis encerram-na. Passámos no teste!
Fotos: Ponte de cabos de Carrick-a-Rede.
Devo ser
dos poucos seres vivos da Era Moderna que não segue religiosamente cada
episódio da Guerra dos Tronos… Mas, quando a nossa filha sugeriu a visita ao
local, durante o planeamento da viagem, já sabia o que eram as Dark Edges! Uma
estrada ladeada de faias, plantadas no último quartel do século XVIII por James
Stuart e esposa, cujos ramos se “entrelaçam” formando um túnel de grande
beleza.
Infelizmente,
devido às hordas de turistas que, devido à Guerra dos Tronos, descobriram as
Dark Edges, o acesso é condicionado e aquela planeada fotografia especial com o
Pantera Negra enquadrado pelas árvores e ramos entrelaçados… Pois! A estrada
está vedada ao trânsito…
Fotos: Dark Edges.
Voltámos
à panorâmica Coastal Road e descemos a costa e as Glens of Antrim, mesmo junto
ao mar.
Chegámos
a Belfast ao final da tarde e o Pantera Negra fez imediato sucesso junto ao
hotel!
- De onde veem? Quantos quilómetros tem? Andaram nestes países todos com
ele?... - A habitual amena cavaqueira de “petrolheads”, que gostam da
marca!
Já tenho
referido isto… A Land Rover lá terá os seus planos e restrições, mas a verdade
é que está a desaparecer dos mercados que foram a sua razão de ser. Até aqui,
onde se esperaria que a marca mantivesse alguma pujança, quase que não se vê. Enfim…
Ainda se
ponderou uma visita rápida ao Ulster Folk & Transport Museum, quanto mais
não fosse, para mostrar às senhoras o DeLorean DMC-12, com carroceria em aço
inoxidável, mais conhecido por ter sido o carro dos filmes “Regresso ao
futuro”. Produziu-se em Dunmurry, nos subúrbios de Belfast. Mas optámos antes
por desfrutar da cidade, eleita pelo World Travel Awards como o “2016 world’s
leading tourist attraction” e, pelo Best in Travel da Lonely Planet, como o
melhor destino para se visitar em 2018.
Capital e
maior cidade da Irlanda do Norte, Belfast remonta à Idade do Bronze. Ganhou
proeminência e afirmou-se como segunda cidade da ilha, atrás de Dublin, a
partir do século XVIII. A Revolução Industrial teve aqui o seu expoente máximo
(na Irlanda), com fábricas, tecelagens, cordoarias e estaleiros a induzirem uma
era de grande prosperidade.
Há um
século atrás, Belfast tinha os maiores estaleiros navais do mundo.
Aqui,
foram construídos os maiores e mais luxuosos paquetes da época, o Olympic, o Titanic
e o Britannic, todos para a White Star Line. Como navio de apoio e transporte
de passageiros entre estes, à época, “gigantes dos mares” e os portos em que
não podiam atracar (e.g., Cherbourg),
construiu-se o luxuoso, mas mais pequeno, Nomadic. Restaurado a rigor, o
Nomadic é visitável em doca seca. Aqui, também, foi construído o Glorious,
considerado o primeiro navio porta-aviões do mundo.
A partir
de meados do século passado a indústria pesada e naval de Belfast entrou em
profundo declínio, arrastando consigo a cidade. Seguiram-se períodos de grande
instabilidade social. Hoje assistimos a um esforço consistente de restauro do
património histórico e de recuperação económica. A cidade está agradável e
merece a visita. O World Travel Awards e o Lonely Planet tinham razão!
Fotos: Belfast.
Seguimos
viagem com destino a Dublin. De permeio, uma visita ao Hillsborough Castle,
residência do Secretário de Estado para a Irlanda do Norte e, também,
residência oficial da Rainha Elizabeth II e dos membros da família real
britânica quando em visita à região. Visita guiada por duas senhoras super
atenciosas mas…, “very, very British”!
Fotos: Hillsborough Castle.
Já nas
Midlands da Irlanda, fizemos um pequeno desvio para visitarmos os túmulos de
Newgrange, Knowth e Dowth, em Brú na Bóinne. Datados de cerca de 3.200 A.C.
(1.000 anos mais antigos que Stonehenge), fazem parte da lista do Património da
Humanidade, da UNESCO. Infelizmente, não nos foi possível visitar o interior.
É sempre
um mistério para nós, o nível de conhecimentos astronómicos destes povos do
Neolítico. Por exemplo, no túmulo maior, o Newgrange, há um orifício rectangular
sobre a entrada por onde, na manhã do solstício de Inverno, os raios de Sol
entram e iluminam a câmara central, no fundo de uma galeria de quase vinte
metros! Também os conhecimentos de engenharia espantam o comum dos mortais. A
construção é bastante grande, manteve-se estanque durante mais de 5.000 anos e,
só para a cobertura, foram necessárias 200.000 toneladas de pedras… Isto numa
época em que ainda não tinham sido inventados, nem os objectos de metal, nem a
roda! O Newgrange foi a maior edificação de toda a Irlanda até às construções
dos castelos pelos povos Anglo-Normandos…, 4.000 anos mais tarde!
Foto: Túmulo de Newgrange.
Chegámos
a Dublin no final da tarde, quando as barreiras policiais e os impedimentos à
circulação automóvel já estavam quase todas removidas. Mesmo assim, ainda
tivemos de dar umas quantas voltas até conseguirmos chegar à zona de Temple
Bar, que seria a nossa “base” nos próximos dias.
Decorria
o “World Meeting of Families” e Sua Santidade, o Papa Francisco, estava em
Dublin. No sábado fez uma visita à cidade e, no domingo, celebrou a Santa Missa
no Phoenix Park.
Dublin é
a capital e a maior cidade da Irlanda. Embora Ptolomeu se lhe refira no ano
140, o que pressupõe a sua existência (e dimensão) desde tempos ancestrais,
assume-se que terá sido fundada pelos Vikings no século IX. Chegou a ser a
segunda maior cidade do Império Britânico e a quinta maior da Europa, no início
do século XVIII.
A “Grande
Fome”, entre 1845 e 1848, foi o período mais negro da história de Dublin e de
toda a ilha. Estima-se que morreram um milhão de irlandeses e que tiveram de
emigrar mais de dois milhões. O monumento na margem do rio Liffey tocou-nos a
alma. O ressentimento contra os ingleses, que pouco fizeram para minimizar o
sofrimento destes povos, perdura até hoje. Percebe-se porquê.
Actualmente,
Dublin é o principal centro cosmopolita, intelectual, cultural, histórico,
industrial e económico do país. Uma cidade muito agradável, com gente das
quatro partidas do mundo, que não nos faz, nunca, sentir estrangeiros.
Começámos
pelo incontornável Trinity College, com uma visita guiada por um estudante de
doutoramento em filosofia. Impressionante, a história (e as histórias!) desta
universidade! Impressionante também a sua biblioteca, com os seus três milhões
de obras!
Depois… Bem,
depois tudo se consegue visitar a pé e foi um deambular por Dublin, sentindo a
cidade, os seus bairros medievais e georgianos, a sua arquitectura, a sua
história e as suas gentes. Foi um visitar de monumentos e instituições, algumas
que já havíamos seleccionado no planeamento desta viagem, outras não. E claro,
não pudemos deixar de aprofundar os nossos estudos culturais dos pubs
irlandeses, com os devidos estágios no “The Porter House Temple Bar” (o
primeiro a produzir a sua própria cerveja), no “The Brazen Head” (o pub mais
antigo da Irlanda) e no “The Bank” (premiado pela Licenced Vintners Association
como o “The best pub with food” em 2017), entre outros. Mesmo nestes tempos
radicais, em que pontificam os batidos “verdes” e as Apps de monitorização do
corpo, o pub mantém-se como o “alfa e o ómega” da interacção social na cidade…
e em toda a Irlanda! É a verdadeira “rede social”!
Entretanto,
casa cheia no Gaiety, o teatro mais antigo da Irlanda, para assistir ao
espectáculo dos RiverDance!
“… A visit to Dublin is not complete without experiencing the energy, the
sensuality and the spectacle of RiverDance at the beautiful Gaiety Theatre…”
– in http://www.RiverDance.com
O
regresso a Cork contemplou uma demorada travessia das montanhas Wicklow, do
Wicklow Mountains Natural Park e do seu vale de Glenmacnass. Paisagens
fantásticas, passagens de montanha e estradas estreitas e sinuosas (que quase
não aparecem nos mapas!), entre elas uma antiga Estrada Militar, com autênticos
miradouros a cada curva. Voltávamos à essência natural da Irlanda.
Já a
caminho das vias principais que ligam a Cork, mas ainda naquelas estradas
estreitas, a minha mulher fechou um pouco os olhos, para logo os abrir, passados
três ou quatro minutos. Um cruzamento. Uma operação STOP. Do outro lado, um
polícia mandava parar um carro para inspecção de documentos… Nós, estávamos
parados, de janela aberta, com um polícia de cotovelo apoiado na janela em
amena cavaqueira comigo e com a nossa filha! A fazer o seu trabalho, claro.
- Quem
éramos / De onde vínhamos / “Vieram no ferry?! E o mar?” / Por onde tínhamos
andado / O que tínhamos gostado / “Também foram à Irlanda do Norte?” / Onde
íamos ficar, em Cork / “É óptimo! Já lá estive de férias com a minha mulher e
os miúdos!” / Elogios a Portugal / Votos de continuação de boa viagem / “E que
o mar esteja bom!” / …
Uns
amigos nossos que tinham estado em Cork duas semanas, disseram-nos que só
tinham conseguido ter Sol a sério… no último dia.
Pois! No
dia em que embarcámos de regresso ao Continente, lá estava um céu azul e um Sol
resplandecente! Até o Poseidon se juntou à festa e nos presenteou com um
autêntico “mar chão”!
Ficámos
com vontade de regressar! Como sempre que chegamos a casa depois das nossas
viagens.
À parte a meteorologia, “que é o que é”, adorámos a ilha e as suas
gentes! No entanto, de tudo o que vimos nas “duas irlandas” (e é tudo de imensa
beleza!), os campos, as falésias, as estradas panorâmicas, os parques naturais, os montes e os vales glaciares das províncias
de Connemara e do Donegal, encantaram-nos completamente! Provavelmente, as zonas
mais belas de toda a ilha. E as menos visitadas também.
Com a viagem deste ano acrescentámos mais um país ao curriculum vitæ do Pantera Negra. Trinta
países visitados em vinte e quatro anos e 375.000 km de bons e fiéis serviços…
Portugal de lés a lés, Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Dinamarca,
Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grão-Ducado do
Luxemburgo, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Islândia, Letónia, Lituânia,
Marrocos, Noruega (onde fomos até ao Cabo Norte), Polónia, Principado de
Andorra, Principado do Liechtenstein, Principado do Mónaco, Reino Unido (+
Gibraltar + ilhas Hébridas + Irlanda do Norte), República Checa, Suécia, Suíça…
Há que
actualizar o autocolante!
Go raibh maith agat !!!
Luís de Matos
(Setembro de 2018)