domingo, 31 de dezembro de 1995

Um conto de Natal - O meu primeiro "atolanço"


Texto e fotos: Luís de Matos
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Diz o velho adágio popular que “mais vale prevenir do que remediar”. Sábias palavras estas, que tanto me martelaram o espírito nesse fim de semana Natalício.

Tendo-se estabelecido que, nesse ano, a família passaria a quadra do Natal em casa dos meus sogros, lá rumámos no Domingo de manhã para terras do Alto Alentejo. Tratando-se da época festiva que era, estava à partida fora de qualquer cogitação efectuar incursões por “fora-de-estrada”, até porque, com as fortes chuvadas que haviam caído nas semanas anteriores, era mais do que provável que alguns caminhos se apresentassem bastante traiçoeiros.











Fotos: Onde tudo começou, numa tranquila aldeia do Alto Alentejo...





Foto: O artista, a caminho do palco...





Assim, o nosso velhinho e fiel Land Rover 88, foi descarregado de toda a “tralha” usualmente associada à prática do “todo-o-terreno” e que, ao longo dos anos, tem ocupado lugar mais ou menos cativo na, cada vez mais diminuta, “caixa de carga” do veículo.

Foi após o almoço que a “tentação” surgiu, dissimulada e inocentemente convidativa. “Com estas chuvas a charca do avô já deve estar cheia, ou ainda não?” Sob o pretexto de não “vetar” a visita de estudo ao elemento mais novo da família, a nossa afilhada de dois anos e meio, resolvemos não ir a pé...

Apenas os veteranos ficaram calmamente em casa (a idade e a sabedoria andam muitas vezes de mãos dadas...).

O resto da “equipe” acomodou-se como pôde no, nestes casos sempre exíguo, Serie_III e lá fomos, por um dos muitos caminhos de serventia agrícola que partem da aldeia, ver a dita charca que, de facto, estava cheia a transbordar.

Deveríamos aqui ter regressado ordeiramente à base, mas não. Quis o destino que ainda fôssemos dar uma espreitadela à “lagoa”. Trata-se de um pequeno planalto em que uma das zonas se enche de água, em alturas de grande pluviosidade, formando uma lagoa extensa mas de pequena profundidade. Curioso, sem dúvida.

Já no regresso a casa, fizémos ainda um pequeno desvio para passar pelo lugar das “Águas Belas”.






Foto: Após termos removido quase um metro cúbico de lama debaixo do chassis...





Ía-mos nós comentando o facto admirável de, mau grado as fortes chuvadas, os caminhos ainda se encontrarem em razoável estado de compactação quando (tinha mesmo de ser !), deixámos de andar para a frente para passarmos a andar... “para baixo”!


Num ápice, o jipe havia ficado com lama pelas portas... perfeitamente atolado! Um cruzamento de linhas de água sob a superfície havia “minado” completamente o terreno, transformando aquela dúzia de metros numa autêntica cilada.






Foto: O jeito que o "high-lift" não tinha dado! Para não falar nas pranchas de desatascamento...


“OK pessoal! À falta de guincho temos que ser nós a meter mãos à obra! Ajudem-me a tirar as chapas e o macaco lá de trás...”, disse eu confiante.

Desgraça! Estava tudo bem arrumadinho... a umas boas dezenas de quilómetros de distância. Chapas, cabos de aço, manilhas e roldana, macaco “hi-lift”, tudo tinha ficado na garagem! Enfim, tudo não. Tínhamos uma pá articulada... Bem, sempre era melhor do que cavar com as mãos! Entretanto, começava a chover a “potes”.





Foto: Nada feito. Quanto mais lama se removia e pedras se colocavam sob os rodados, mais parecia que a “Mãe Terra” sugava o veículo!



Deitámos pois mãos ao trabalho, mas cedo concluímos que, sem o auxílio de um tractor, ou de algo semelhante, não iríamos longe...

Elegemos então o meu cunhado, antigo atleta do “Ajudense”, em Lisboa, para mensageiro. Decisão acertada, a primeira do dia, pois em pouco tempo estava de volta, com o tio e um tractor. Do mal o menos, ficava tudo em família!

Só que um Land Rover quando se atola, é porque tem razões para tal e o pequeno tractor revelou-se impotente na sua tarefa. Mais ainda, ele próprio ficou semi-atolado!

Felizmente, dado o seu menor peso, lá o conseguimos safar.

Com tudo isto, a noite aproximava-se a passos largos, pelo que interrompemos os “trabalhos”, seguindo “a boots” para casa... Afinal, era a noite de Natal! Nunca aquela lareira tinha visto tanta bota e sapato juntos... a secar.




Foto: Com o dilúvio o caminho transformou-se neste “ belo” ribeiro...






Foto: Na companhia da Lua...




Ao raiar do dia, após uma noite que teimava em não ter fim, conseguimos contactar com um vizinho, possuidor de um imponente tractor John Deere, de quatro rodas motrizes, diferenciais bloqueáveis e tudo o resto, que prontamente se disponibilizou para nos ajudar, não sem antes tecer algumas considerações a propósito de “meninos da cidade que não sabem lêr o estado do piso”, “grandes nabos que deixaram atolar um Land Rover”, etc. Confesso que, como condutor da viatura atolada, o meu sentido de humor não se encontrava nas suas melhores marés...

Enquanto o tractor não chegava lançámos, agora com uma equipe reforçada por quase toda a família, mãos à obra por forma a desviar o curso das águas para fora da zona em que o jipe se encontrava, pois a chuva copiosa que se iniciara na véspera ainda não havia cessado, tendo transformado o caminho num pequeno ribeiro. Curioso nisto tudo, era que apenas aquela dezena ou dezena e meia de metros se mantinha movediça, continuando o resto do caminho a apresentar uma boa compactação. Procurámos também remover alguma lama debaixo do veículo, por forma a libertar o chassis, facilitando a futura manobra de reboque e evitando algum consequente dano na base do jipe.

Eis finalmente chegado o tractor e, com ele, um reforço de alento, que já começava a dar de si.

Foi, contudo, “Sol de pouca dura”, pois as primeiras manobras saldaram-se por duas grossas cordas partidas, uma de sisal e a outra, novinha em folha, de nylon. É que quando Deus não quer, não quer mesmo! E, de facto, não queria. No decurso de mais uma manobra, o fogoso tractor acabou por ficar enterrado na lama quase até aos pedais...

A situação era agora bastante mais crítica, pois o tractor corria mesmo sérios riscos em termos mecânicos (estava todo de “molho”!). Mas que rico dia de Natal!

Bem, finalmente alguém teve uma ideia brilhante, que apenas pecou por tardia. Pedir auxílio ao serviço de desempanagem da Corporação de Bombeiros Voluntários da vizinha vila de Nisa.

Explicada a situação, o único veículo disponível com capacidades para “lidar com a coisa” era um antigo Mercedes 4x4, dotado de um guincho mecânico capaz de remover o “Tolan”, caso este ainda se encontrasse no Tejo, mas pesando em ordem de marcha, umas expressivas 12 toneladas!

Para os valorosos “Soldados da Paz”, no entanto, não existem impossíveis e assim, lá palmilhámos uns quantos quilómetros em redor do “local do crime”, até encontrar um caminho suficientemente compactado que permitisse levar o “titan” até próximo do atoleiro.

Já à vista do objectivo e eis que uma roda resolve saír fora do trilho e, zás... carro dos bombeiros atolado também! Os “Deuses”, decididamente, haviam tirado o fim de semana para se divertirem à nossa custa. Para mais, continuava a chover a cântaros!

Felizmente que uma robusta oliveira, ainda que num estado de abandono entristecedor, se ofereceu para servir de “âncora”, realizando a sua boa acção de Natal.

Passada a cinta em redor do tronco, bem junto à base, engatado o cabo do guincho e o potente veículo lá logrou alcançar terra firme pelos seus próprios meios. Ufh!

Posicionado o auto-tanque (levou-se até onde podia ir, com algumas garantias de regresso!) e desenrolado o cabo do guincho, verificou-se que este não tinha comprimento suficiente para atingir o tractor... Só que nesta altura do campeonato, para abalar o moral das “tropas” era preciso muito mais.

Deste modo lá fomos, juntamente com um dos bombeiros, às vilas vizinhas pedir cabos de aço emprestados (sim, porque de cordas eu nem queria ouvir falar!) e menos de hora e meia depois já estavamos de volta!

Ponto 1º da ordem de trabalhos: - Safar o tractor!

Mais uma boa dose de trabalho em cima e o tractor, que até pegou à primeira, alcançou terreno seguro. Foi o êxtase geral! O ponto mais crítico estava ultrapassado... e só já faltava o Land Rover.

Como o cabo não chegava até ao jipe (faltava ainda um metro e muito...), este teve de ser puxado pelo tractor, só que agora com um comprimento de cabo suficientemente grande para que o “dito cujo” se mantivesse em terreno firme... sem se atolar de novo!

Havia chegado finalmente a hora de a minha boa estrêla brilhar um pouco (e já não era sem tempo!), pois para atravessar o atoleiro, a reboque e com as “redutoras” em acção, era imperioso acertar numa trajectória delicada, manobra que se revestia de alguma perigosidade.







Foto: O “herói” da fita fotografado no dia seguinte. Para supremo deleite dos “Deuses”, estava um Sol radioso!



E foi com vozes de “Força!”, “Vai!”, “Está quase!” e “O tipo afinal sabe mexer nisto”, que o nosso venerável Land Rover (posteriormente baptizado de “Águas Belas”, imaginem porquê) deixou para trás a armadilha lamacenta e percorreu caminhos mais saudáveis.

Levar toda a caravana de volta à reconfortante “segurança” do asfalto não foi tarefa fácil, pois o dilúvio continuava a caír (assim como algumas barreiras...) e a “engrossar” preocupantemente alguns ribeiros que tínhamos que atravessar. Mas lá se conseguiu, com água pelas portas e daí até ao lar acolhedor foi um salto.

À imagem dos contos de fadas, embora este mais parecesse de bruxas, tudo está bem quando acaba bem. E assim foi, com a família, os bombeiros e restantes intervenientes neste “Christmas Trophy”, bem juntinhos à lareira suspirando de alívio, retemperando as forças e... a desejar umas “Boas Festas” a todos.






É que já eram quase dez da noite do dia de Natal de 1995 !!!




Luís de Matos


(Natal de 1995)
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