quinta-feira, 3 de novembro de 2011


De “Cabo” a “Cabo”…
Uma viagem familiar entre os extremos Oeste e Norte da Europa



Texto e fotos: Luís de Matos

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Foto: O trajecto.

Nas estrofes da Ilíada, de Homero, Europa seria filha da Fénix, a “ancestral” dos fenícios… ou então, seria filha do rei Agenor de Tiro, na Fenícia, e de Teléfassa… Sendo uma mulher de deslumbrante beleza, terá despertado os amores de Zeus, deus-rei do Olimpo. Ele tê-la-á visto quando passeava com algumas amigas numa praia da Fenícia, actual Líbano, e, não resistindo aos seus encantos, terá decidido ir ao seu encontro para a raptar, disfarçado como um imponente touro branco, para que a sua mulher, a ciumenta Hera, nada percebesse… Levada para Creta, onde terá desembarcado na praia de Matala, a bela Europa terá então correspondido à exuberante paixão de Zeus… e o casal ter-se-á perdido de amores junto a uma fonte, debaixo de plátanos que, segundo a lenda, terão conservado para sempre a sua folhagem…

Foto: "O rapto de Europa", de Rubens. 
(Fonte: http://www.wikipedia.com)

Claro que alguém tinha de vir estragar todo este idílio… Alfred Wegener, totalmente desprovido de qualquer veia poética, alvitrou há já um século que, durante a era Paleozóica, qualquer coisa como 540 a 245 milhões de anos atrás, teria existido um gigantesco continente único, que baptizou de Pangeia, qual “barca” inafundável flutuando sobre o magma. A força centrífuga originada pela rotação da Terra, fez das suas e a Pangeia fracturou-se, com os blocos resultantes a migrarem lentamente, numa perpétua “deriva continental”.

A Europa surge-nos assim como um continente de grandes planícies, com uma suave altitude média de 375 metros e a estender-se, na sua área continental, entre os 36º e os 71º de latitude Norte, dentro da chamada “zona climatérica temperada”, o que a tornou particularmente apta para acolher e desenvolver a vida humana.

Foto: Pangaea.
(Fonte: http://www.wikipedia.com)

Questões religiosas, políticas e culturais à parte, que muito têm ditado sobre os limites efectivos da dita Europa, parece que reúne algum consenso considerar que é limitada a norte pelo Oceano Glacial Ártico, a sul pelo mar Mediterrâneo, a oeste pelo Oceano Atlântico e a leste pelas cordilheiras dos Urais e do Cáucaso.

Para o que aqui interessa, aceitemos que a ponta mais ocidental da Europa dita “continental” se situa em Portugal, no Cabo da Roca, e que a sua ponta mais setentrional se situa no topo da Noruega, no Nordkapp, ou Cabo Norte, mais à portuguesa…

… E lá fizemos então mais uma “grande viagem familiar” (à nossa "escala"!), desta feita até ao dito Cabo Norte… Um misto de férias e de “visita de estudo”, essencialmente para a nossa filha, já com treze anos, que vai assim ganhando um pouco mais de “mundo”.

Como de costume neste tipo de viagens privilegiamos a natureza, as paisagens e os espaços fora das grandes cidades, em que a liberdade de uma viagem de carro faz toda a diferença. As grandes cidades, essas, estão sempre mais facilmente acessíveis num qualquer esquema de voos.

Foto: Portugal // Saída de Abrantes, ao raiar do dia.

Parece que os primeiros portugueses a atingir, por estrada, o Cabo Norte, o fizeram no Verão de 1964. Vasco Callixto, a esposa e os dois filhos, num Opel Kadett montado em Portugal na fábrica da Azambuja, chegaram ao Cabo Norte a 1 de Julho de 1964, quarenta e quatro dias depois de saírem de Lisboa! Hoje um destino quase mítico para turistas que demandam lugares menos comuns, há 40 anos contudo, atingir o Cabo Norte por estrada era ainda uma verdadeira aventura. O alcatrão pouco ultrapassava a capital da Noruega e de pontes e túneis, quase não se ouvia falar! Entretanto, uma nova realidade surgiu no Mar do Norte… Petróleo! E, pelo que nos foi dado a ver, a Noruega tem sabido gerir, muito bem, os ganhos dessa realidade…

Não pretendendo recriar a viagem original, propusemo-nos no entanto a fazer um género de "Cabo a Cabo", do Cabo da Roca ao Cabo Norte, unindo a ponta mais ocidental com a mais setentrional da Europa continental. O regresso foi feito pelo lado da Finlândia, com um pequeno “salto” à Suécia. Para os trajectos entre Portugal e a Escandinávia, estabeleceram-se paragens “q.b.” (Parque Astérix; grande dique Afsluitdijk; Miniatur-Wunderland; vale do Loire…), o que acrescentou, claro, mais uns quantos dias à viagem. Mas viajar é mesmo isto e as “escalas” que fizemos são imperdíveis!

De novo, a opção pelo "cruise & drive" que, para além do inegável charme que empresta à viagem, permite, a par com os vários "pause days", manter um bom equilíbrio entre as etapas de maior condução e as de maior relax… E, em termos de viagem familiar, fica muito mais barato do que qualquer equiparável modo “fly & drive”! Há que manter sempre alerta a “costela do Tio Patinhas” para que os custos não disparem… De novo também, levámos o "Pantera Negra", o nosso bom e fiel Range Rover Classic com dezassete anos e duzentos e oitenta mil quilómetros de excelentes serviços e muita aventura, por terras dessa Europa e do Magrebe… Portugal, Espanha, Grã-Bretanha (incluindo as Highlands, as ilhas Hébridas e Gibraltar), Principado de Andorra, França, Principado do Mónaco, Itália, Bélgica, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Grão-Ducado do Luxemburgo, Marrocos...                                                                                                              






Fotos: Portugal // Cabo da Roca.

O nome de “Pantera Negra” foi-lhe dado pela nossa filha, numa era em que ainda se deliciava com as aventuras de “Mogli, o filho da selva” e dos seus inseparáveis amigos, o urso Balú e a pantera negra Baghera. E “Pantera Negra” ficou, até hoje!

Desta feita, o trajecto rondou os catorze mil quilómetros, dez mil quilómetros por terra e o restante por mar, mais coisa, menos coisa...       

Como uma boa parte do prazer de uma viagem está, também, no seu planeamento, tudo se começou a preparar com imenso tempo, por alturas do final do Outono / início do Inverno do ano anterior, com tópicos de viagem, pontos a ver, coisas a fazer, reservas, etc, etc… Nada como as tradicionais pesquisas nos mapas da Michelin e da Freytag & Berndt, nos guias de viagem da American Express, Lonely Planet, Rough Guides, na Internet e em tudo o mais o que se conseguiu lançar a mão. Algum “planeamento” ajuda imenso e acrescenta valor às viagens, ainda que, em cada dia, se decida mais detalhadamente onde ir e o que fazer..., até tendo em conta o que se (não) conseguiu ver ou fazer no dia anterior…

Alguns dos trajectos de ferry-boat, como por exemplo o Hurtigruten (considerado pelos guias da American Express e da Lonely Planet, como a “mais bela viagem do mundo”!), condicionavam as datas de toda a viagem. Qual foi o nosso espanto quando constatámos que estavam esgotadas com oito meses de antecedência! Depois de muito telefonema e de muito e-mail, depois de muito ajuste de datas e trajecto, lá se conseguiu a última cabine “interior” (depois fizeram-nos um upgrade para uma exterior sem nos cobrarem nenhum adicional!) e transporte para o “Pantera Negra” entre Trondheim e Honnigsvåg, a bordo do navio “MS-Trollfjord”, da Hurtigruten. Estando essa “âncora” garantida, estabeleceu-se toda a restante viagem…






Fotos: Espanha // Tordesillas.

E que viagem!!! Espectacular! Recomenda-se vivamente! De todos os países da Europa e do Norte de África que já atravessámos, a Noruega destaca-se claramente. Pelo menos, no Verão… Uma outra nota também interessante e agradável. Apesar da conjuntura internacional bastante desfavorável ao nosso país, fomos sempre muito bem recebido em todo o lado. Diria mesmo que com amizade, especialmente quando percebiam o tipo de viagem que estávamos a fazer.

Um tipo de viagem com um “sabor” e um carisma muito especiais. Em termos simplistas, ou se adora, ou se odeia. Quando se empreendem, com muita calma, fazem-se pelo local que se pretende atingir, por tudo o que se vai ver e aprender ao longo do trajecto e pela viagem em si. Aí, entra sempre o tal lado menos racional… Não se escolhe, nem o melhor, nem o mais rápido, nem o mais económico, nem o mais confortável veículo disponível. Escolhe-se “aquele veículo especial”, que nos diz muito e que transforma completamente o modo de fazer a viagem! Nós gostamos do “velhinho” Range Rover Classic, por todos e mais alguns motivos… Ok! É “pancada” mesmo…

Havia por lá, no Cabo Norte, gente um pouco de toda a Europa, mas naquele dia nós éramos os que vinha-mos de mais longe. Encontrámos gente de bicicleta! Encontrámos gente em Harley Davidson (eram predominantes), em Citröen “2CV” e “H Van”, em Volkswagen “Carocha” e “Pão de forma” e em tudo o mais que se possa imaginar. No top do improvável, estava um casal de suíços, com a idade dos nossos pais, com quem nos cruzámos (e cumprimentámos, claro) na estradinha de acesso ao Cabo Norte e que ficaram no mesmo hotel que nós, em Honnigsvåg. Estavam a fazer a viagem num Rolls-Royce Phantom do início dos anos sessenta do século passado! Poderiam, de certeza, ter escolhido qualquer outro modo de a fazer, ou qualquer outro veículo. Mas não seria, de todo, a mesma coisa. É esse o espírito!  (… a tal “pancada”…)

E o velhinho “Pantera Negra” até fazia boa figura junto ao, ainda mais velhinho, Rolls Royce…

Ah! Levar sempre protector solar e replente de insectos “q.b.”!!! E também Vomidrine® para alguma emergência… Sem falar nos abafos para a neve, que naquelas paragens tem ar de perpétua!



Fotos: França // Biarritz.



Os primeiros dias…


"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano…” – Camões – “Os Lusíadas”, Canto III

O Cabo da Roca, a 38º 47’ de latitude Norte e a 9º 30’ de longitude Oeste, tem uma altitude de 140 metros acima do nível médio das águas do mar e é considerado o ponto mais ocidental da Europa Continental (sendo que o ponto mais ocidental da Europa se situa no ilhéu de Monchique, junto à ilha das Flores, no arquipélago dos Açores, ou então, na ilha do Faial do mesmo arquipélago, caso apenas se considere a plataforma Euro-Asiática). Este facto é devidamente assinalado na lápide do padrão e, no posto de turismo, podemos mesmo obter um certificado de passagem neste local emblemático. Daqui, por terra, só há mesmo que seguir para o Leste…

Isto de se viver na ponta da Europa tem os seus encantos, mas, para se ir a qualquer lado, temos de atravessar meio continente.

Como a travessia de Espanha, pela “estrada dos emigrantes”, acaba por já ser bem conhecida da família, procuramos sempre escolher um ou vários pontos para uma visita mais demorada, de forma a quebrar a monotonia do dia…

Desta vez elegemos a simpática e acolhedora Tordesilhas. Exactamente! Aquela pequena cidade onde, a 7 de Julho de 1494, foi assinado, entre o Reino de Portugal e o recém-constituído Reino de Espanha, um tratado de divisão entre as duas Coroas das terras descobertas e por descobrir fora da Europa. O tratado definia como linha de demarcação um meridiano situado 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde, o que indicia que Portugal já então tinha perfeito conhecimento da existência do Brasil (cujo “achamento” oficial só seria declarado em 1500 por Pedro Álvares Cabral). Os territórios a leste deste meridiano pertenceriam à Coroa Portuguesa e os territórios a oeste, à Coroa Espanhola, garantindo-se também o domínio português do Atlântico Sul, essencial para o trajecto da “volta do mar” utilizado para contornar as correntes marítimas de Sul, que empurravam para o Norte as embarcações que navegassem junto à costa sudoeste africana,  permitindo assim a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança. O “Tratado de Tordesilhas” foi ratificado pela Espanha a 2 de Julho e por Portugal a 5 de Setembro desse mesmo ano de 1494. Três décadas depois, a 22 de Abril de 1529, em Saragoça, seria assinado o tratado que estabelecia o “anti-meridiano” correspondente ao meridiano definido pelo primeiro tratado. Resolvia-se assim a “questão das Molucas” (actual Indonésia), que ficaram sob domínio português.











  

Fotos: França // Parque Astérix.

E pensar que Portugal foi a primeira potência global que o mundo conheceu! Seguiu-se-lhe a Espanha, a Holanda, a França, a Inglaterra e, por último, os Estados Unidos da América…

Com mais uma “aula” de história dada, ao vivo e a cores, a propósito de Tordesilhas, o final deste primeiro dia de viagem acolheu-nos já em França, no hotel habitual destas nossas andanças, em Biarritz, com um final de tarde e início de noite absolutamente divinais.

Geminada com Cascais, pela sua influência inspiradora no desenvolvimento da costa do Estoril como estância de veraneio, Biarritz é uma das principais cidades do país basco francês. Tendo sido, desde o século XII, um importante porto baleeiro, viu as alegadas propriedades terapêuticas das suas águas trazerem-lhe, a partir do século XVIII, legiões de peregrinos em busca de alívio para os seus padecimentos. Em 1854 a Imperatriz Eugénia, esposa de Napoleão III, construiu um palácio na praia (hoje, o hotel do palácio) e a própria família real britânica aqui passou férias regularmente, tal como o rei Alfonso XIII de Espanha.

A abertura de um casino, em 1901, reforçou a imagem de Biarritz como o elegante centro turístico da Europa, a que também acorriam os americanos da costa leste. Ao longo da segunda metade do século XX, Biarritz transformou-se também num destino de eleição para surfistas. Aliás, achámos mesmo que os surfistas que ao raiar do dia já estavam “de molho” em cima das pranchas, eram os mesmos que lá tínhamos visto a altas horas da noite anterior… O Museu do Chocolate, que é de lamber os ditos, é também visita quase obrigatória em Biarritz…
Foto: Bélgica // Próximo de Antuérpia. Uma sugestão para os nossos amigos motards com filhos.

A próxima etapa contemplava uma “escala” maior na zona de Paris, desta vez no Parque Astérix, a cerca de 30 quilómetros a norte da cidade (o que também nos facilitava o prosseguimento da viagem daí a dois dias). Esquecemo-nos apenas de que, uma sexta-feira à tarde, com os miúdos a terminarem o ano lectivo, significava cerca de sessenta quilómetros de filas para contornar a cidade! E não existiam grande alternativas… Quer pelo Norte, quer pelo Sul, os boletins de trânsito da rádio estavam “bem alinhados”… Vejamos pelo lado positivo… Foi uma experiência nova, pois nunca tínhamos estado em tantos, e tão grandes, engarrafamentos…

O Parque Astérix só tem um problema… A existência da Disneyland Paris do outro lado da cidade! Fora isso, é um parque excelente e muito bem conseguido, pleno de diversão, que nos faz reviver, uma a uma, todas aquelas aventuras que nos habituámos a ler e ver quando éramos mais novos. O hotelzinho do parque, “Les trois hiboux”, todo de madeira e em plena floresta do Parque Natural de Oise, é um autêntico mimo.

Dois dias depois, e é tempo de voltar à estrada… Hoje vamos fazer a proeza de passar em quatro países… França, Bélgica, Holanda e Alemanha.

Fotos: Holanda.










Fotos: Holanda // Grande dique Afsluitdijk.

Os planos iniciais de visitar Bruges (a Veneza da Bélgica) e, no caminho, também Iprès e as memórias sempre didácticas da “Grande Guerra”, onde um meu tio-avô combateu, ficaram irremediavelmente comprometidos com os atrasos de horas provocados pelas obras nos auto-estradas… Tiro aqui o chapéu à nossa Brisa, face à sua congénere belga. Só para dar um exemplo, para uma das intervenções interrompeu todas as faixas de circulação de um dos sentidos ao longo de quilómetros, com a circulação a arrastar-se com todos os cuidados por um espaço estreito e traiçoeiro, um misto do que restava de parte da faixa de segurança e de terra e erva da berma! Quilómetros e quilómetros de filas! Horas! No sentido contrário, tudo na boa sem qualquer desvio de trânsito, claro… Belgas!!!

Entretanto, o membro mais jovem da equipa esqueceu-se do telemóvel em cima da cama… Impensável regressar ao Parque Astérix! Telefonámos, várias vezes, para o hotel… Lá nos confirmaram que tinham encontrado o dito telemóvel… e ficou combinado de o enviarem para Bergen, onde chegaríamos só daí a três dias e onde nos deteríamos por algum tempo… Para não deixar qualquer margem para dúvidas, enviámos também, on the move, um e-mail com todos os detalhes.

Fotos: Alemanha // Bremen.

Mesmo com os atrasos com as obras nos auto-estradas, ainda deu para cruzar a Holanda pelo Norte, pelo grande dique Afsluitdijk, um dique de 32 km de comprimento e 90 m de largura, percorrido por uma auto-estrada e por uma ciclo-via. Este dique, no Norte do país, fecha o antigo golfo do Zuiderzee, separando-o do Mar de Wadden e transformando-o num imenso lago. Levou 13 anos a construir, entre 1920 e 1933, sendo ainda hoje considerado uma das grandes obras de engenharia civil no mundo.

O final do dia acolheu-nos já na Alemanha, em Bremen, onde pernoitámos. Cidade antiga com 1200 anos de história e encantos, nas margens do rio Wesser, Bremen consegue ser hoje um dos palcos mundiais da inovação e da tecnologia. Noite para rever também as histórias dos “Quatro amigos músicos”, de Grimm, ou do “Guardador de porcos”, de Andersen, junto às esculturas evocativas na zona antiga da cidade.

Na preparação da viagem cruzei-me com uma referência a um tal “Miniatur Wunderland”, em Hamburgo. Um género de maquette de caminhos de ferro, na escala HO, representando áreas emblemáticas de Hamburgo, dos Alpes austríacos, da América do Norte, da Escandinávia e da Suíça. Ao que constava, era a maior do mundo no género… Ficava em caminho e até nos tínhamos levantado cedo, pelo que resolvemos dar o benefício da dúvida e fazer um pequeno e rápido desvio até ao centro da cidade e visitar o tal “Miniatur Wunderland”…










Fotos: Alemanha // Hamburgo. "Miniatur Wunderland".

Foi uma agradabilíssima e espectacular surpresa. Só de lá saímos depois do almoço! A dita maquette, que se estende por um conjunto de várias salas e pisos, iniciada no ano 2000, ainda não está terminada e já contempla cerca de doze quilómetros de linhas férreas, quase novecentos comboios e onze mil carruagens, trezentas mil luzes, quatro mil veículos e barcos, duzentas e quinze mil árvores e duzentas mil figuras humanas… que se estendem já por quatro mil metros quadrados de exposição dinâmica. A secção do aeroporto, com aviões a descolar e a aterrar, foi aberta ao público em Maio de 2011 e espera-se que todo o projecto esteja concluído em 2020. É simulado na perfeição o ciclo do dia e da noite e tudo aquilo “mexe”. Aviões, balões de ar quente, navios, comboios, automóveis, autocarros e camiões, máquinas, fábricas, pessoas! É, além do mais, interactivo! E tem um sistema electrónico-informático a controlar todos os milhares de dispositivos dinâmicos que merece ser visto, e percebido. Um só ponto a melhorar… a disponibilização de folhetos e livros noutras línguas, que não o apenas o alemão… Sprechen sie deutsch?

Mais uma volta rápida por Hamburgo e pelo que resta da sua, outrora imponente, catedral, e seguimos para Norte, rumo ao Reino da Dinamarca!




Fotos: Alemanha // Hamburgo.

Como o destino final do dia era no topo Norte do país, em Hirtshalls, e ainda por lá queríamos deambular um pouco no final da tarde, resolvemos não nos determos mais e cruzar o país pela auto-estrada.

Por alturas de Vejle apercebo-me, de repente, que os travões do “Pantera Negra” estavam “esponjosos”… Paramos numa área de serviço com oficina, peço para me verem se havia alguma coisa de anormal com os travões… Aparentemente, estava tudo bem. Seguimos viagem…

Não! Não era impressão minha. Os travões não estavam com o “tacto” normal… Paramos de novo, numa área de serviço com oficinas da Thermo-King, para camiões. O pessoal foi “cinco estrelas”. Explicada a situação, desmontou-se a roda da frente do lado direito, que estava a babar valvulina e, de facto não havia nada de mal com os travões de per se… O problema é que os rolamentos da roda tinham gripado e o calor gerado tinha derretido todos os vedantes, a valvulina tinha-se escapado, o metal ao rubro tinha feito mais uns quantos estragos… e o “Pantera Negra” já não ia a mais lado nenhum sem ser devidamente reparado.

Num veículo com quase duas décadas e a caminho dos trezentos mil quilómetros, tudo pode falhar, a qualquer momento. Mas isto não estava mesmo nada no programa… Antes da viagem o “Pantera Negra” tinha sido sujeito a uma ainda mais profunda revisão, como é sempre que se preparam estas viagens de maior envergadura. Entre outras coisas, os rolamentos (que a maioria das pessoas nem imagina que existam…) foram todos vistos e substituídos… Enfim! “Azar dos Távoras”, como costumo dizer.

O Sol ainda ia alto nestas latitudes, mas já eram horas de jantar. Contactar a assistência em viagem do ACP – Automóvel Clube de Portugal… Explicar a situação e ter a sorte de falar com os operadores de serviço Joaquim Marques e Nuno Madeira, que percebendo o delicado e caricato da situação (uma família que estava a fazer uma viagem de catorze mil quilómetros e que, ao final do dia, tinha o “jipe” avariado algures a meio da Dinamarca…), fizeram os possíveis e os impossíveis para accionarem o homólogo “ACP dinamarquês” e rapidamente conseguirem uma solução de reboque, estadia e oficina! A dedicação, o acompanhamento, a eficácia e a eficiência de todos os intervenientes, portugueses e dinamarqueses, merecem-nos o mais elevado louvor e reconhecimento!




Fotos: Dinamarca // Horsens e uma paragem não planeada.

Em relativamente pouco tempo, um reboque da Dansk Autohjælp estava junto às oficinas a carregar o “jipe”. Seguimos daí para a L.C. Lastvogne Auto-Service, em Lund, próximo de Horsens, onde o Jonas, um conhecido da empresa de reboques e, segundo estes, um autêntico “mago” da mecânica automóvel, tomaria conta do nosso “Pantera Negra” e tentaria o milagre de o ter pronto no dia seguinte…!

Posto isto, fomos levados para um muito simpático hotel da cadeia Scandic, não sem que antes o extraordinariamente prestável motorista do reboque nos falasse da história da zona de Horsens e nos fosse mostrando algumas das suas características e empresas mais emblemáticas, como por exemplo a fabricante das conceituadas janelas de sótão “Velux”. Sempre a aprendermos!

Cancelámos a reserva no hotel de Hirtshalls que, simpaticamente e dada a situação, nada nos cobrou pelo “no show”.

Pouco mais podíamos fazer do que mantermo-nos em alerta e em contacto com o Jonas, pelo que aproveitámos boa parte da manhã para deambular pelas redondezas… Antiga de onze séculos, a cidade situa-se numa zona de grande beleza natural, nas margens do fjord de Horsens. Os últimos tempos têm assistido a uma significativa expansão económica, com a fixação de indústrias e serviços, especialmente nas áreas da electrónica e das artes gráficas. Também em termos culturais Horsens marca presença internacional com festivais e espectáculos onde têm actuado nomes como Madonna, Iron Maiden, Joe Cocker, Elton John, The Beach Boys, Bob Dylan, Tom Jones, Bryan Adams, David Bowie, José Carreras, Helmut Lotti, Westlife, R.E.M., Paul McCartney, Robbie Williams, The Rolling Stones, Dolly Parton, AC/DC, U2 e os Snow Patrol… Realiza-se também em Horsens o maior Festival Medieval Europeu, no último fim-de-semana de Agosto. Não fazíamos a mais pequena ideia!

Entretanto, tínhamos um ferry-boat para apanhar… às três da tarde, em Hirtshalls, duzentos e cinquenta quilómetros mais a norte… Este navio levar-nos-ia até Bergen. Dormíamos a bordo e entrávamos pelos fjords de Bergen a meio da manhã. Tinha resolvido oferecer à família um pequeno “luxo”, reservando uma cabine na vante do navio para melhor podermos desfrutar, quer da viagem, quer dessa entrada matinal em Bergen. Ah! E estava tudo pago, como é a regra com estas companhias…





Fotos: Dinamarca // Hirtshalls.

Não existiam em Horsens, nem na Dinamarca toda, as peças Land Rover necessárias para toda a reparação. Teriam de vir de Inglaterra, o que demoraria mais uns dois ou três dias. A comunidade Land Rover, contudo, é algo de muito peculiar com um espírito de entre-ajuda absolutamente ímpar, o famoso “Espírito Land Rover”. O Jonas falou com um amigo que trabalhava na Land Rover e que tinha um Range Rover Classic idêntico ao nosso, ao qual tinha trocado os semi-eixos, rótulas e cubos originais por uns reforçados. As peças originais, ainda que usadas, estavam em boas condições e foram-nos cedidas a um preço justo. Às cinco da tarde o “Pantera Negra” estava reparado, pronto para continuar a viagem e só então o Jonas nos contou toda a epopeia das peças e da corrida contra o tempo para que nós pudéssemos seguir ainda naquele dia! Para nós, os dinamarqueses, de quem eu já tinha uma excelente impressão de contactos anteriores, passaram imediatamente para uma espécie de “altar” de veneração!

O ferry-boat das três da tarde, para Bergen, “já era!”, claro... Durante a tarde, enquanto aguardávamos pela conclusão das reparações, tínhamos visto as várias hipóteses de operadores de ferry-boat, horários, portos de partida e destino, etc., que nos fizessem chegar à Noruega… Foi já a rolar em pleno auto-estrada para Hirtshalls que desatámos a fazer telefonemas e que conseguimos efectuar uma reserva para o ferry-boat “Super Speed I”, da Color Line, que saía de Hirtshalls às oito e meia da noite (da tarde, que o Sol ainda estava alto no horizonte!) e chegava a Kristiandsand, mesmo no Sul da Noruega, antes da meia-noite! Eficiência escandinava. Às 20h30 em ponto estávamos a levantar ferro no porto de Hirtshalls!

Noruega! Aí vamos nós!!!



Nas terras dos Trolls…


"Agora nestas partes se nomeia
A Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia Ilha, que se arreia
Das vitórias que Itália não lhe nega.
Aqui, enquanto as águas não refreia
O congelado inverno, se navega
Um braço do Sarmático Oceano
Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano.…” – Camões – “Os Lusíadas”, Canto III

O trajecto é curto e o ferry-boat bastante rápido. Antes da meia-noite estávamos a desembarcar em Kristiansand, zona de florestas, praias e portos bastante movimentados, pelo menos durante o Verão.

Já o tínhamos tentado ainda na Dinamarca e continuámos a tentar durante a viagem. Ao telefone e com aqueles nomes impronunciáveis (para nós!) não conseguimos perceber bem qual o evento que estava a decorrer em Kristiandsand, mas todos os hotéis estavam esgotados! Não só em Kristiandsand, como nas localidades em redor. Enfim…, só não ligámos para aqueles hotéis tipo “1, 2, 3… e coisa e tal”, por motivos óbvios!

Com isto tudo, já era meia-noite e meia hora… A noite estava clara e, lá para antes das três da manhã, o Sol já estaria de novo acima da linha do horizonte. Estávamos bem e cheios de energia. O “Pantera Negra” estava como novo e… decidimos “ir andando”. Se surgisse algum hotel com bom aspecto ao longo do trajecto, faríamos uma paragem.


Fotos: Noruega // Setesdal e as primeiras horas do dia nas montanhas.

De Kristiandsand a Bergen, seguindo a rota turística pelo vale de Setesdal e pelas montanhas e glaciar do Hardanger, são cerca de meio milhar de quilómetros. Às velocidades que aquelas estradas permitem, contando com umas quantas paragens e uma ou outra travessia de ferry-boat… cerca de dez ou onze horas de viagem…

Foi um dos mais marcantes trajectos de toda a viagem. Inesperado. De todo, não planeado, e que nos surpreendeu pela sua beleza ímpar, enchendo-nos a alma. Foi o nosso primeiro grande contacto com a Noruega e a força da sua natureza!

Fotos: Noruega // Hardanger.

Seguir ao longo do Otra, subindo todo o vale de Setesdal, acompanhados pela magia de uma noite clara e luminosa, com sombras e reflexos a darem vida às montanhas, aos lagos, cursos de água e imponentes cascatas, é, pura e simplesmente intraduzível, quer por palavras, quer por fotografias. Assistir, antes das três da manhã, ao nascer do Sol nas montanhas cobertas de neve e à dança dos reflexos luminosos que se espraiavam pelas encostas nevadas e pelos lagos semi-gelados é uma experiência única! Até se cantou no “jipe”! Bem… As senhoras cantaram, que eu alinhava mais pelo nível de um certo bardo de uma famosa aldeia gaulesa…
Fotos: Noruega // Bergen. "Fisketorget" - Mercado do peixe.

Tivemos também nesta “directa” mais um contacto com a excelente organização norueguesa. Próximo de Evje, ainda o Sol não tinha nascido, acabavam de cortar a estrada… Ooops! Ter de voltar para trás e acrescentar mais umas centenas de quilómetros ao trajecto, era tudo o que não apetecia. Parámos e imediatamente o responsável pelas obras se nos dirigiu, não escondendo a admiração por ver ali um veículo, àquela hora e, ainda por cima, com matrícula portuguesa… Pediu imensa desculpa, mas tinham de substituir uma conduta e não contavam com trânsito àquela hora… Se pudéssemos esperar uns minutos, agradeciam. Mas se estivéssemos com muita urgência eles colocavam umas chapas de emergência para nós passarmos. Claro que podíamos esperar, para além dos elogiarmos por estarem a fazer os trabalhos à noite minimizando o impacto no tráfego! Em menos de meia hora a estrada estava de novo aberta e seguimos viagem! Alô! Estradas de Portugal!!!...





Fotos: Noruega // Bergen.

No Hardanger, o maior planalto de terras altas do norte da Europa, ainda nos sentimos tentados a uma visita a pé ao glaciar de Folgefonna… Mas como já tínhamos planeado uma visita a Brigsdal, nas franjas do glaciar Jöstedal, seguimos viagem, não sem antes eu quase ter entrado em hipotermia após ter achado o máximo dar uma ultra-breve voltinha a fotografar as montanhas e a neve que nos rodeava… em calções e sandálias, que era a indumentária que ainda trazia da solarenga Dinamarca. A falta que uma boa dose de Akvavit não fazia!

Chegámos a Bergen às dez e meia da manhã, precisamente ao mesmo tempo que o ferry-boat que tínhamos reservado e em que deveríamos ter embarcado às três e meia da tarde do dia anterior, em Hirtshalls… O que teríamos perdido, se tudo tivesse corrido como planeado!

Como não podia deixar de ser, fomos almoçar ao famoso “mercado do peixe”, ali mesmo ao lado das bancas de peixe e marisco fresco. Fomos atendidos por estudantes espanhóis e italianos que, na Noruega, aproveitavam as curtas férias de Verão para ali trabalharem. Muito bom! Apenas nos perguntámos porque é que este conceito não é replicado em Portugal, que tem mercados de peixe que dão dez a zero a este de Bergen…











Fotos: Noruega // Bergen.

Bem “almoçados”, era tempo de uma volta rápida por Bergen. Como estava a chover, ou Bergen não fosse a cidade mais “chuvosa” da Europa (diz-se que os bébés já nascem com um guarda-chuva na mão…), deixámos para o dia seguinte uma volta mais detalhada.

Rodeada de sete montanhas, num enquadramento único de paisagens naturais, Bergen foi a capital do Reino da Noruega entre 1070, ano da sua fundação por Olav Kyrre, até 1299, ano em que a capital passou para Oslo. Até ao primeiro quartel do século XIX, manteve-se como a maior e mais desenvolvida cidade do Reino. Entre 1350 e 1750 fez parte da Liga Hanseática, uma aliança de cidades mercantis que estabeleceu e manteve um monopólio mercantil (e político, também) no norte da Europa, e o seu cais antigo, o cais alemão Bryggen, com os seus seculares armazéns de madeira, hoje abrigando comércio variado e um museu, passou a integrar a lista do Património da Humanidade, da UNESCO, em 1979.

Uma cidade vibrante de vida, cosmopolita, natural e culturalmente rica, que se descobre e nos encanta em cada rua, em cada bairro, em cada esquina. De per se, Bergen vale a viagem e uma visita demorada. Para além de tudo o mais, Bergen é também a “porta de entrada” para os fjords, também eles inscritos na lista do Património Mundial da UNESCO. Segundo o National Geographic, os mais bem preservados e, segundo muitos, um dos mais belos destinos de viagem do mundo.
Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip" - Bergen.

 Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord dos "Sonhos". Lavik.

Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord dos "Sonhos".

Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord dos "Sonhos". Nordeide.

Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord dos "Sonhos". Vikoyri.


Fotos: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord dos "Sonhos". Balestrand. Hotel Kviknes.

Tínhamos reservado, com a obrigatória enormíssima antecedência, o “Sognefjord in a nutshell” e às oito da manhã, depois de uma excelente e bem dormida noite, para compensar a anterior…, zarpávamos no barco rápido “Sognekongen” rumo ao fjord dos Sonhos, o maior e mais profundo fjord da Noruega e do mundo, estendendo-se por mais de 200 km até ao sopé das montanhas Jotunheimen e atingindo profundidades superiores a um quilómetro, mais propriamente 1308 metros no seu ponto mais profundo.

O programa contemplava uma volta completa, com partida e chegada a Bergen, incluindo navegar para Norte entre ilhas e ilhotas ao longo da costa norueguesa, entrar e percorrer a quase totalidade do fjord dos Sonhos, com paragens “q.b.”, subir todo o vale de Flåm em comboio de montanha (o Flåm Railway) até ao planalto de Myrdal e daí regressar, em comboio normal através de paisagens também elas marcantes, até Bergen.

Fotos: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord de Aurland. Transbordos em pleno fjord.

Chegar cedo, seguindo a recomendação do operador turístico, permitiu-nos escolher os melhores lugares, mesmo na vante do barco, com uma vista soberba e acesso à plataforma da proa, que era aberta. Além do mais, apesar de ainda ser “época alta”, não ia muita gente. Depois da recepção chuvosa do dia anterior em Bergen, hoje a meteorologia estava excelente. Não chovia nem nevava…

Para além da perspectiva turística, estas linhas marítimas são um elo importantíssimo nos sistemas de transportes de pessoas, veículos e carga em toda a Noruega. O percurso contemplava paragens em quase todas as povoações que pontilham as margens dos fjords que percorremos (o fjord dos Sonhos, a entrada do fjord de Gudvangen e o fjord de Aurland), com as correspondentes ligações a outras linhas marítimas, ferroviárias e rodoviárias. Para quem apenas estava a passear, estas paragens eram mais uma excelente oportunidade para mais umas centenas de fotografias… No top das paragens de ligação ficou a paragem na zona de Fresvik, mesmo no meio do fjord, em que o nosso barco e um outro ferry-boat pararam e acostaram lado a lado (passe o pleonasmo), passaram-se as amarras quais vikings lançando ganchos de abordagem, colocaram-se as pranchas de transbordo e os passageiros que seguiam para outro destino “mudaram-se de armas e bagagens” para o outro barco. Tudo ali, na maior das calmas e serenidade, no meio do fjord.
Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord de Aurland.



Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord de Aurland. Aurlandsvangen.





Fotos: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord de Aurland. Flåm.


Do fjord dos Sonhos seguimos até ao final do fjord de Aurland, não sem antes termos passado na entrada do fjord de Gudvangen… Após meia dúzia de horas de navegação de “sonho” nas calmas águas dos fjords, atracámos no cais de Flåm, mesmo atrás do imponente paquete Crown Princess, um dos muitos que demandam as paisagens ímpares dos fjords noruegueses em viagens turísticas.

Esperava-nos agora o comboio de montanha, sem cremalheira, que sobe todo o vale de Flåm até ao planato de Myrdal com um declive de 1:18 em 80% do seu trajecto. À época, em 1923, a sua concepção e construção foi uma manifestação notável da engenharia norueguesa. Os primeiros comboios, ainda a vapor, circularam em 1940 e quatro anos depois toda a linha estava já electrificada.

A linha de Flåm está considerada uma das mais espectaculares do mundo, serpenteando entre ravinas e desfiladeiros, cursos de água e cascatas (em que a de Kjosfossen é a mais impressionante), e proporcionando vistas panorâmicas sobre algumas das mais soberbas paisagens de montanha do país.

Fotos: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Fjord de Aurland. Comboio de montanha de Flåm.

Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Vale de Flåm.

Foto: Noruega // "Sognefjord in a nutshell round trip". Vale de Flåm. Cascatas de Kjosfossen.

Como os dias de Verão nestas latitudes são bem longos, aproveitámos ainda o final da tarde para deambular calmamente por Bergen, desta vez sem chuva! O cais de Bryggen com os edifícios seculares de madeira, a cidade velha, a igreja de Maria (ao que consta, o edifício mais antigo de Bergen), a torre de Rosenkrantz, as muralhas de Håkon…, sem esquecer o único funicular ferroviário de cabo da Noruega, o Floibanen, que nos transporta a uma plataforma, a 320 metros acima do nível de mar, de onde se podem apreciar as melhores vistas da cidade e dos fjords e montanhas que a circundam. Sublime!

Bem… Entretanto o tal telemóvel esquecido em Paris há uma semana atrás e que ia ser enviado imediatamente para Bergen… ainda não tinha chegado. Pedimos à recepção que, caso chegasse, o reenviasse para a nossa residência em Portugal…

Era tempo de tirar o “Pantera Negra” da garagem do hotel e de “voltar à estrada”. Queríamos percorrer percorrer estradas e estradinhas, subir e descer autênticos “vales encantados”, ver os fjords do topo das montanhas e da sua base, ver os glaciares, enfim, tudo!


Fotos: Noruega // Vale de Voss.

Já o tínhamos antecipado quando do planeamento desta viagem e comprovado nas quase onze horas que levámos a percorrer o meio milhar de quilómetros entre Kristiandsand e Bergen… A Noruega não é para os “petrol head” entusiastas da velocidade, nem para quem queira percorrer distâncias “homéricas” em cada dia. O terreno montanhoso e as estradas sinuosas, com apertados limites de velocidade, não o permitem. A condução, mesmo no Verão, exige cuidados redobrados. Sempre! É um país com paisagens únicas e diversificadas para ser apreciado calmamente.

Seguimos para o vale de Voss, com uma das maiores estâncias de desportos de Inverno da região ocidental da Noruega, e daí para Gudvangen, à entrada do Næroyfjord, património mundial da UNESCO e um dos mais belos fjords que visitámos. Na véspera tínhamo-lo visto do lado do fjord de Aurland quando navegávamos a caminho de Flåm. É um dos mais impressionantes fjords do país.




Fotos: Noruega // Gudvangen, no final do Næroyfjord.

Já nos começávamos a habituar às sequências de ferry-boats, pontes, viadutos e túneis rodoviários que preenchem qualquer viagem na Noruega. Este túnel de Gudvangen, que fazia a ligação a Langhuso, tinha “só” cerca de onze quilómetros e meio! Nada, se comparado com o túnel entre Aurland e Lærdalsøn que, com os seus vinte e cinco quilómetros foi, até há pouco tempo, o maior túnel rodoviário do mundo. Trocámos a rapidez deste último pela espectacularidade da “Estrada da Neve”, a Snøvein, pelas montanhas, que só está aberta ao trânsito durante o fugaz Verão nórdico e, mesmo assim, com alerta permanente devido à neve, ao gelo, ao nevoeiro e ao vento. Aproximadamente a meia dúzia de quilómetros de Aurland, impunha-se uma paragem no miradouro de Stegastein, uma plataforma que se prolonga mais de trinta metros para lá da ravina, oferecendo uma panorâmica ímpar, a 640 metros de altitude, sobre o fjord de Aurland. Convém não ter vertigens, pois o miradouro (obra premiada num concurso nacional de arquitectura) termina numa parede de vidro sobre o vazio! Como entretanto tínhamos passado acima de uma faixa de nuvens, apenas pudemos “adivinhar” a maravilhosa paisagem que daquele ponto se poderia enxergar, caso a meteorologia colaborasse um pouco mais…


Fotos: Noruega // "Snøvein" - Estrada da neve, entre Aurland e Lærdalsøn.



Fotos: Noruega // "Snøvein" - Estrada da neve, entre Aurland e Lærdalsøn. Miradouro de Stegastein.
(A última fotografia ilustra o que se poderia ter visto, sem núvens... (Fonte: http://www.panoramio.com))








Fotos: Noruega // "Snøvein" - Estrada da neve, entre Aurland e Lærdalsøn.

Depois de mais umas quantas brincadeiras na camada de neve que ladeia a estrada, descemos a outra vertente das montanhas e seguimos para a próxima paragem, a igreja de madeira de Borgund.

Construída em 1150 e dedicada ao apóstolo Santo André, a “Borgund Stavkirke” é a única igreja de madeira que chegou praticamente inalterada aos nossos dias. Isto apesar de alguns danos provocados por incêndios. As únicas peças “recentes” são o púlpito (do século XVI) e um retábulo do altar (do século XVII).


Fotos: Noruega // Borgund. A “Borgund Stavkirke” é a única igreja de madeira que chegou praticamente inalterada aos nossos dias.

Regressámos ao fjord dos Sonhos e, umas travessias de ferry-boat depois, chegávamos a Dragsvik. A ideia inicial contemplava a dormida no Balholm de Kvikne, em Balestrand. Este hotel em madeira, a lembrar os chalets suíços, foi construído em 1877 sendo, desde então, um dos ex-libris da zona. Como os preços que me pediram, ainda por cima para ficarmos no anexo pois o hotel já estava praticamente esgotado (e fiz as reservas com sete meses de antecedência…), até para um norueguês roçariam o exorbitante, a opção recaíu em Dragsvik, ali mesmo ao lado. E ainda bem, que as vistas são muito melhores!


Fotos: Noruega // Fjord dos "Sonhos". Hella e travessia em ferry-boat para Dragsvik.

Situada numa península no meio do fjord dos Sonhos, Dragsvik é uma base habitual para passeios e actividades turísticas e de aventura na área, oferecendo vistas idílicas absolutamente deslumbrantes para os braços do fjord e para as montanhas cobertas de neve que o circundam. Uma autêntica aproximação ao paraíso! Até a gastronomia era de excepção!







Fotos: Noruega // Fjord dos "Sonhos". Dragsvik.

Hoje o dia não podia ser mais variado em paisagens e trajectos. Começamos por subir as montanhas de Gaular, contornando o pico Melsnipa e seguindo a estrada “RV13”, a “Golden Road”, uma das vias panorâmicas imperdíveis da zona oeste do país, com uma daquelas sequências de “SSS” que exigem bons travões a descer e bom binário motor a subir! A paisagem após cada curva consegue ofuscar a anterior, que já tinha ofuscado a precedente… Seguimos depois por dezenas de quilómetros junto às águas do lago Jölstravatnet até Skei. Não queríamos perder a oportunidade de ver e de mostrar à nossa filha o que era um glaciar. Assim, em Olden virámos para Brigsdal, um dos braços do Jöstedal, o maior glaciar da Europa, relíquia da última “Idade do Gelo”.




Fotos: Noruega // Ulvastad.

Foto: Noruega // Rv13 e o troço "Golden Road" junto ao pico de Melsnipa.

Foto: Noruega // Vik.



Fotos: Noruega // Skei.




Fotos: Noruega // Innvik.

A última grande “Idade do Gelo” ocorreu há dezoito mil anos e, há dez mil anos toda a Noruega estava ainda sob uma espessa camada de gelo. Com o desgelo, os glaciares que restaram tornaram-se excelentes repositórios de indicadores de evolução do clima e do seu impacto na natureza circundante. Infelizmente, o estudo da variação dos glaciares apenas se começou a realizar com alguma técnica e precisão no final do século XIX, com o contributo de cientistas e organizações nacionais e internacionais. Investigação sobre períodos anteriores tem de fazer apelo a evidências históricas e geomorfológicas. No caso concreto do glaciar Jöstedal, as informações fidedignas mais antigas remontam ao século XVIII quando um avanço deste glaciar destruiu quintas e cobriu terras aráveis durante um período de arrefecimento que ocorreu na Era Moderna e que foi apelidado de “Pequena Idade do Gelo”. Muitos investigadores acreditam que o aquecimento actual do planeta corresponde essencialmente a um período de recuperação natural após essa “Pequena Idade do Gelo” e que a actividade humana não é um factor decisivo para a actual tendência de aumento da temperatura global. No entanto, esta tese é combatida por outros investigadores, que acreditam que a causa maior do incremento de temperatura no planeta ser função do impacto da Revolução Industrial… Acho que ambas as teses são credíveis.

O Parque Nacional do Jöstedal foi criado em 1991 e abrange uma área de 1310 km2. Procura preservar, para estudo e para as gerações futuras, uma vasta área de todo o glaciar no seu estado natural. Algumas zonas são visitáveis, a pé, mas sempre em visitas guiadas por pessoal credenciado. As normas de segurança são, como não poderia deixar de ser, absolutamente rígidas.

O caminho de acesso à base do glaciar é mais um daqueles trajectos de sonho, junto ao lago Oldevatnet, pontilhado aqui e acolá pelas típicas casinhas de madeira pintada de cores garridas, usualmente de encarnado, e com os telhados cobertos de turfa. Além de uma integração paisagística ímpar, estes “telhados verdes” propiciam um considerável isolamento térmico e acústico.








 
Fotos: Noruega // Brigsdal.

Ainda extasiados pelo que havíamos visto e no meio de “profundíssima” discussão sobre glaciares, natureza, história, geologia e aquecimento global, lá seguimos pelas montanhas até à passagem de Djupvasshytta, nas margens do parcialmente gelado lago Djupvatnet. Próximo da cabana de montanha, hoje um hotel / abrigo de montanha, deixámos a estrada principal e desviámos pelo caminho, não asfaltado mas perfeitamente transitável (está aberto entre Maio e Outubro), para o cume do Dalsnibba. Do topo deste cume conseguem-se as que são consideradas, provavelmente, as mais belas vistas a 1500 metros de atitude em todo o mundo…, abrangendo as montanhas circundantes cobertas de neve, os lagos e o impressionante fjord Geiranger, provavelmente também, o mais fotografado fjord do mundo. Exacto, continuamos sem conseguir sair da lista dos locais Património da Humanidade, da UNESCO…
Fotos: Noruega // Erdal.

Regressámos à estrada RV63 e ao seu sinuoso troço denominado Ørneveien (a “Eagle road”, por passar por uma zona que é ainda hoje um conhecido habitat de águias). Aberta ao tráfego apenas em 1955, esta estrada permitiu o acesso rodoviário à povoação de Geiranger durante praticamente todo ano, passando a não depender apenas do acesso marítimo, via fjord. Sensivelmente a um terço do caminho, o miradouro Flydasjuvet oferece a melhor vista sobre o início do fjord Geiranger. Imperdível…

Fotos: Noruega // Estrada Rv63. Passagem de Djupvasshytta.

Descemos à base do fjord e voltámos a subir, a parar em mais um miradouro de “suster a respiração”, e a dirigirmo-nos para as montanhas e para a neve. Demandávamos a Trollstigveien, a “Estrada dos Trolls”, não sem antes fazermos uma paragem nas gargantas de Gudbrandsjuvet, um impressionante conjunto de correntes e remoinhos que se precipitam numas gargantas com cinco metros de largura e vinte de profundidade.






Fotos: Noruega // Estrada Rv63. Pico de Dalsnibba e vistas para o fjord Geiranger.

A “Estrada dos Trolls” desce a partir de Stigrøra para o vale de Isterdalen, um dos mais belos vales glaciares que já vimos, rodeado pelas majestosas montanhas Kongen (o “Rei”), Dronningen (a “Rainha”) e Bispen (o “Bispo). A sequência de “SSS” com limites rígidos à circulação, é acompanhada pelas quedas de água de Stigfossen. No topo existe um miradouro, de tal forma bem integrado na paisagem agreste que, quando chegados ao fundo do vale olhamos de volta para a montanha que tínhamos acabado de descer…, não o conseguimos ver. Aberta ao tráfego em 1936, foi, à época, o vencer de um enorme desafio de construção. O antigo e fascinante trilho pedestre de montanha, o Kløvstien, ainda está transitável, mas não é aconselhável a crianças nem a quem não estiver em adequadas condições físicas. Durante séculos, este trilho foi a única ligação terrestre entre Romsdalen e Sunnmøre… Descemos a Trollstigsveien, claro!

Fotos: Noruega // Fjord Geiranger.

Foto: Noruega // Rápidos de Gudbrandsjuvet.

Foto: Noruega // Alstad.

Mais uma dúzia de quilómetros e estávamos em Åndalsnes num simpático hotel virado para o fjord de Romsdals… e com uma gastronomia exemplar, uma vez mais.

Com as estradas que atravessas as Gargantas do Dadés, em Marrocos, as Gargantas do Verdon, em França, e com as estradas “Golden Road”, “Eagles Road” e “Trolls Road”, na Noruega, já tínhamos conseguido colecionar um número razoável daquelas “estradas de eleição”, associando vistas absolutamente imperdíveis a um toque de espectacularidade (e perigosidade também), que povoam todos os guias do tipo “Drives of a lifetime”.







Fotos: Noruega // "Trollstigsveien" - Estrada dos Trolls.

Ainda na Noruega, faltava-nos a Atlantherhavsveien, a “Atlantic Road”… Portanto, nada como escolher o trajecto mais longo até Trondheim e seguir para Mølde, atravessar a Atlantherhavsveien, visitar rapidamente Kristiandsund e continuar então para Trondheim…

Depois dos grandes incêndios de 1916 e dos bombardeamentos da 2ª Guerra Mundial, as antigas e encantadoras construções de madeira de Mølde quase desapareceram, para dar lugar a construções simples e direitas, muito “soviéticas”. Dos roseirais, que em tempos deram à cidade o nome de “Cidade das Rosas”, restam poucos ou nenhuns… Há uma praça com uma estátua alusiva ao tema, no centro da cidade. Quanto aos afamados Concertos de Jazz… Ok! Era um Domingo de manhã… As vistas, essas, continuavam “ao mais alto nível”, ou não estivéssemos na Noruega.

A “Atlantherhavsveien” tem sido considerada a “Construção Nacional do Século” e o reputado “The Guardian” proclamou-a “The most beautiful car journey in the world”… Com menos de uma dezena de quilómetros, é um feito de engenharia, com oito pontes ligando ilhas e ilhotas ao longo da costa e permitindo evitar um trajecto alternativo de largas dezenas de quilómetros, na ligação da aldeia piscatória de Bud com a cidade de Kristiansund. O panorama indescritível e a proximidade com os elementos, onde não é raro o avistamento de orcas e outros cetáceos, fazem desta estrada um autêntico paraíso nos dias de Verão… e, ao que nos contaram, um aterrador inferno quando as tempestades de Inverno ditam as suas leis…







Fotos: Noruega // "Atlantherhavsveien" - Estrada atlântica.

O regresso das chuvas “à séria” interrompeu o nosso pic-nic tardio junto ao mar. Seguimos assim sem grandes paragens para Kristiansund e daí para as rectas a perder de vista de Kanestraum e Rodal, chegando, já ao final da tarde e ainda debaixo de chuva forte, a Trondheim.

Foi a primeira capital do reino da Noruega, tendo sido fundada em 997 pelo rei viking Olav Tryggvason, com o nome de Nidaros. Ainda hoje é na sua catedral, a catedral Nidarosdomen, que é realizada a coroação e benção dos Reis, continuando a ser um importante centro de peregrinação na Escandinávia. É na catedral que se encontram os restos mortais do rei Olav Haraldsson, o “Santo”, canonizado no século XI e santo padroeiro da Noruega.

Várias vezes parcialmente destruída por incêndios, foi redesenhada no século XVII com vias mais amplas que impedissem a fácil propagação do fogo. É considerada a cidade europeia com maior número de edifícios de madeira, perfeitamente restaurados e funcionais, albergando hoje empresas, centros de investigação e comércio de retalho. Um exemplo de recuperação inteligente, que se estende também pelas suas extensas zonas ribeirinhas. Terceira cidade mais importante do país, orientada para a investigação e desenvolvimento, com uma significativa parte da sua população a estudar, Trondheim é também considerada a capital tecnológica da Noruega.











Fotos: Noruega // Trondheim.

A partir de Trondheim optámos por fazer aquela que os guias da American Express e da Lonely Planet classificam como sendo “a mais bela viagem do mundo”. À hora de almoço, embarcámos com o nosso fiel “Pantera Negra”, no “MS-Trollfjord”, um dos mais modernos navios da frota da companhia Hurtigruten que, desde 1893 realiza o transporte marítimo ao longo da costa norueguesa.

Assegurando hoje o trajecto entre Bergen e Kirkenes, já junto à fronteira com a Rússia, os navios da Hurtigruten (que significa “rota rápida”), com partidas diárias e escalas em 34 portos, são vitais para as comunidades locais. Os porões do navio levam um número limitado de veículos e imensas paletes de mercadorias e equipamentos. Em cada porto de escala, mesmo nos de paragem mais rápida, segue-se o mesmo ritual de entrada e saída de passageiros, embarque e desembarque das respectivas viaturas e carga e descarga das mais variadas mercadorias.

O navio era esplêndido, com cabines confortáveis e funcionais, amplos salões panorâmicos no interior e com conveses exteriores onde não faltava sequer uma zona de piscina ártica, aquecida, claro. A restauração e cafetaria eram também de bom nível. Hoje, para além do serviço comercial regular, as carreiras da Hurtigruten são imensamente procuradas para turismo… e esgotam rapidamente!

Claro que tínhamos logo de nos tornar mais facilmente conhecidos da simpatiquíssima e prestável tripulação… Depois do check-in, quando saí do navio para conduzir o “Pantera Negra” ao porão, o responsável de embarque registou o cartão electrónico de embarque da viatura, mas não registou o meu. Não me apercebi de nada. À hora de zarpar, a minha mulher é chamada à recepção pelos altifalantes de bordo… É que tinham o registo da sua saída do navio, mas não o do seu embarque… Pois… Na azáfama do embarque, tínhamos também trocado os cartões, ditos pessoais e intransmissíveis! Zarpámos a horas, mesmo assim…

  


Fotos: Noruega // "MS-Trollfjord", um dos mais recentes navios da frota da Hurtigruten.

Estava a nossa filha a tentar o seu melhor inglês na cafetaria, pedindo um chocolate quente, quando ouviu um efusivo:

- Tu és portuguesa?!

A nossa diáspora é de facto quase omnipresente! Ali estava uma simpática senhora que há nove anos trabalhava na Hurtigruten. Ninguém melhor para nos contar como é a vida a bordo de um navio deste tipo nestas paragens, como é viver na Noruega, como são os noruegueses, o êxtase do “Sol da meia-noite” e a depressão da “grande noite polar”. Até fomos apresentados ao “Comandante-Chefe do Hotel”… Passámos num ápice a passageiros quase VIP!

Os próximos quatro dias levaram-nos a Honnigsvåg, com escalas em Rørvik, Brønnøysund, Sandnessjøen, Nesna, Ørnes, Bødo, Stamsund, Svolvær, Stokmarknes, Sortland, Risøyhamn, Harstad, Finnsnes,Tromsø, Skjervøy, Øksfjord, Hammerfest e Havøysund.
Foto: Noruega // Ilhéu de Tarva.






Fotos: Noruega // Fjord de Tarval..

Das várias actividades e idas a terra disponíveis optámos apenas pelo “safari” aos remoinhos de Bodø e, já nas ilhas Lofoten, por Svolvær e Tromsø. Estas eram, aliás, as escalas de maior duração (várias horas) que o navio efectuava no nosso trajecto. As restantes escalas eram mais curtas e, embora permitissem a ida a terra, foram desfrutadas a bordo, geralmente no convés superior, plataforma privilegiada para apreciar as paisagens sempre deslumbrantes (e já não estou a incluir as desinibidas nórdicas na “artic pool”!), o colorido típico das povoações e o bulício dos cais e das actividades portuárias. Um autêntico paraíso de fotógrafos… e aspirantes a sê-lo. A Hurtigruten oferece também actividades e saídas externas em que se retorna ao navio apenas nas escalas seguintes.

Nesta primeira noite cruzámos o Círculo Polar Ártico (66º 33’ 44” Norte, no Verão de 2011). Entrámos assim definitivamente na zona “ártica”, que nesta época do ano é a zona do “Sol da meia-noite”, com o “Astro Rei” sempre acima da linha do horizonte. Uma experiência nova e inesquecível para todos nós.

A posição exacta do Círculo Polar Ártico depende da inclinação do eixo da Terra que, essencialmente devido ao efeito da força das marés, influenciadas pelo nosso satélite natural, a Lua, tem uma variação aproximada de 2º em cada 40.000 anos… Cerca de 15 metros por ano. Achámos todos muito bem os tais 66º 33’ 44” Norte…, que cruzaríamos algures a meio do fjord de Otervær, entre as escalas de Nesna e de Ørnes.

À laia de desafio, nessa “noite” a tripulação informou que cruzaríamos essa linha imaginária entre as 6h30 e as 8h00 da manhã… Olhando de relance para as cartas náuticas que, em grandes écrans, nos permitiam acompanhar em “real time” o trajecto do navio, e calculando a sua progressão em virtude da velocidade média, uma estimativa grosseira apontava para que cruzaríamos o tal Círculo Polar Ártico por volta das sete e meia da manhã…

Claro que às 6h30 já estava no convés superior do “MS-Trollfjord”, debaixo de uma “armadura” de casaco polar, gorro e luvas, e de máquina fotográfica em punho! Eu e mais uma data de “maduros” que não queriam, nem por nada, correr o risco de perder o grande momento…







Fotos: Noruega // Fjord de Otervær e a passagem do Círculo Polar Ártico, no sentido Norte.


Estava mesmo frio… e enquanto o tal “círculo” não chegava, procurámos enriquecer o tempo através do estudo. No caso, através do estudo de uma outra marca “cultural” desde sempre associada à Escandinávia… a Akvavit.

A Akvavit é uma aguardente originária dos países escandinavos, mas também produzida em quantidades razoáveis na Alemanha e na Islândia. É destilada numa primeira fase, obtendo-se aí um “espírito” neutro, bastante forte. Só na segunda destilação lhe podem ser adicionados os aromas desejados. A sua graduação alcoólica situa-se entre os 40º e os 50º.

A Akvavit líder no mercado norueguês é a “Camel”, produzindo-se aqui também uma das mais conhecidas Akvavit, designada por “Linie Akvavit”. Esta tem origem em Trondheim e apresenta-se com uma cor dourado-escuro. A forma encontrada para o seu envelhecimento é bastante curiosa, tendo sido inspirada em “procedimentos portugueses”. Os barris de madeira são carregados em navios com rumo à Austrália, passando forçosamente a linha do Equador (daí o nome “Linie”). A temperatura durante a viagem, mais o agitar constante dos barris permitem-lhe um envelhecimento mais rápido, com características consideradas inigualáveis. No regresso à Noruega, esta Akvavit é engarrafada em garrafas de 70 cl ou 35 cl, sempre pequenas e de formato esguio. No contra-rótulo da garrafa é colocado o nome do navio onde foi efectuada a viagem, que demora vários meses. Note-se que a Akvavit norueguesa é envelhecida, mas não aromatizada, pelo que as suas qualidades são totalmente adquiridas pelo método de envelhecimento… Na Noruega, a Akvavit é muito usada para acompanhar refeições de peixe cru ou salmão fumado e deve beber-se muito fria. Ao que consta, nas zonas rurais da Noruega ainda é frequente um ritual de beber Akvavit, que consiste no seguinte: “… dois bebedores devem olhar-se mutuamente nos olhos enquanto vão bebendo a Akvavit, sem desviar os olhos um do outro…”, a que eu acrescentaria… “sem caírem”.

Estava mesmo frio…

Às 7h30 da manhã lá chegou o Círculo Polar Ártico! Os meus cálculos grosseiros, meio a “olhómetro”, afinal estavam correctos. O local é assinalado por um grande globo metálico na pequena ilhota de Vikingen no meio do fjord de Otervær. Não deu para ir a terra, claro. O navio reduziu a marcha e passou lentamente, fazendo soar a sereia. Tiraram-se milhares de fotografias e… entrámos no Ártico!

O evento e a excitação geral foram devidamente assinalados pela presença a bordo do Rei Neptuno. Ataviado a rigor e depois dos discursos e animação da praxe, despejou uma concha cheia de água gelada e cubos de gelo pelas costas abaixo (por dentro das camisolas!) dos imensos e animados voluntários, que depois tiveram direito a um “shot” de Akvavit… para ressuscitarem!

Os “fotógrafos madrugadores” já não precisavam de nada disso…

– Maesltröm! Maesltröm! - gritavam os marinheiros.
Estávamos, pois, nas perigosas paragens da Noruega. O Nautilus tinha sido arrastado àquela voragem no mesmo instante em que íamos arriar o barco. É um facto que na ocasião da preamar, as águas comprimidas adquirem uma violência intensa, formando um torvelinho, do qual nunca escapou navio algum. Ali foi o local onde o capitão Nemo colocara seu navio, voluntária ou involuntariamente. O Nautilus descrevia uma espiral, cujos raios iam diminuindo aos poucos, arrastando consigo o bote, ainda preso ao seu costado.”
– 20.000 Léguas submarinas – Jules Verne,1869.

Todos os que na juventude lemos e relemos os textos de Jules Verne nos lembramos do épico final das “20.000 Léguas submarinas”, em que o professor Pierre Aronnax, o seu fiel assistente Conseil e o experiente arpoador Ned Land, conseguem evadir-se do submarino Nautilus, a bordo do bote de serviço inafundável, em pleno maelström, no arquipélago das Lofoten. O maelström referido no livro é o Moskenstraumen e localiza-se em mar aberto, entre as ilhas de Moskenesøya, Værøy e Mosken.

O outro maelström famoso é o Saltstraumen, o maior de todos, localizado a 33 km de Bodø, também próximo das citadas ilhas Lofoten. É considerado o mais forte maelström de correntes de maré do mundo… Ocorre no canal que liga o fjord de Salt, no exterior, com o mais largo fjord de Skjerstad. A cada seis horas, 400 milhões de metros cúbicos de água do mar forçam a sua entrada (ou saída) num canal de 3 km de comprimento por apenas 150 metros de largura e 30 metros de profundidade, atingindo velocidades de 40 km/h. No pico da força da corrente, criam-se vórtices de dez metros de largura com uma profundidade de cinco metros! O canal é apenas navegável nos curtos períodos próximos das voltas da maré, em que chega a poder-se considerar enganadoramente “calmo”…








Fotos: Noruega // Bodø. "Expedição" ao maelström  Saltstraumen.


Atracámos em Bodø. Minutos depois, estávamos no cais junto das equipas de apoio que, a bordo de embarcações semi-rígidas com uns expressivos 250 Cv a serem debitados dos seus motores fora-de-borda, nos levariam mar fora até ao estreito dos remoinhos… Lá nos ataviámos com aqueles fatos “árticos” à prova de água (com colete salva-vidas incorporado), luvas, gorros e viseiras… e, com maior ou menor dificuldade, tomámos o nosso lugar nas embarcações. Vogar em águas abertas de acelerador a fundo, quase só a “tocar as ondas de duas em duas”, apenas pedia umas colunas a debitarem a “Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, para ser perfeito!

Passámos junto a gneisses e granitos pré-câmbricos, onde a geóloga de serviço (uma simpatiquíssima alemã) nos deu uma autêntica aula de geologia, morfologia e história da terra, vimos a alguma distância a maior aquacultura de bacalhau do mundo e chegámos ao poderoso maeström Saltstraumem. Apanhámos uma hora de força de marés “intermédia”, o que permitiu aos experientes pilotos uma abordagem, ainda que cuidadosa, à zona dos remoinhos… interdita no pico das correntes. Ok! Não é o remoinho da parte final do “Pirata das Caraíbas”! Mas deu para perceber bem que os barcos não arriscavam sequer a proximidade de algumas zonas… Atravessámos, literalmente, alguns dos remoinhos e sentia-se claramente a força das águas a puxar e a rodar as embarcações. Acelerador a fundo e os tais 250 Cv faziam-nos sair dos sorvedouros! Antes de embarcarmos eu tinha, muito “doutamente”, explicado à família porque é que não se podia passar por cima dos remoinhos por ser perigoso… Pois!

Nas margens, centenas de pessoas assistiam a este impressionante espectáculo das forças da natureza… Sem falar nos inúmeros pescadores que tiravam partido de uma das mais ricas zonas de pesca da Noruega. No regresso, fizemos um desvio para uma passagem cautelosa a baixa velocidade em zona de nidificação de águias marinhas, a maior ave de rapina do país.

Já no cais, uma vez mais os portugueses demonstraram aquela pequena mas nobre e apreciada diferença face a muitos outros povos. No início da expedição tínhamos sido nós a ajudar algumas pessoas, com maiores dificuldades, a entrarem nos barcos. À saída…, escusado será dizer que também. O caso mais crítico foi o de uma senhora alemã, muito simpática, mas com um peso digno de figurar em concursos tipo “O peso certo” e algumas dificuldades de movimentos. Tirá-la do barco e faze-la subir para o cais… sem a ajuda de uma grua, era pura e simplesmente tarefa impossível para o piloto e para a geóloga. Ficámos nós os três a ajudar e lá se conseguiu por a senhora em terra firme. O resto da malta, claro está, pirou-se mal o barco atracou…








Fotos: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Stamsund.

Entrámos nos domínios do montanhoso arquipélago das Lofoten, na costa Oeste da Noruega, entre os paralelos 67 e 68º Norte. As suas sete ilhas principais são Austvågøy, Gimsøy, Vestvågøy, Flakstadøy, Moskenesøy, Værøy e Røst, com uma população total de 24.000 habitantes. A actividade principal no arquipélago é a pesca, mas também, por surpreendente que pareça nestas latitudes, a agricultura. O turismo tem vindo a ganhar espaço na economia das Lofoten, com cerca de 200.000 visitantes por ano.

No Verão, o Sol mantém-se sempre acima do horizonte, espalhando uma luz forte sobre praias de areia branca e sobre um mar verde cristalino, a fervilhar de peixe. As aldeias piscatórias mantêm intactos o charme, a traça e o colorido forte que se tornou popular.

Diziam-nos que a luminosidade aqui era diferente da luminosidade em qualquer outro local da Terra, o que desde sempre atraiu artistas nacionais e estrangeiros… O mesmo se ouve sobre Lisboa, sobre a Provença, sobre a Flandres… Com mais ou menos “artistas” presentes, a verdade é que as inspiradoras paisagens deste arquipélago são de uma beleza ímpar, a que dificilmente a objectiva de um qualquer aspirante a fotógrafo de viagem amador consegue fazer uma pálida justiça. Em Novembro de 2007, a revista National Geographic Traveler considerou o arquipélago como o terceiro mais belo do mundo…

 Fotos: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Com o Sol alto no Céu, quase que apetecia um mergulho...

 Foto: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Um momento sempre celebrado, o do cruzamento com outro navio da frota da Hurtigruten

Foto: Noruega // Arquipélago das Lofoten.

Aproveitámos uma escala mais longa na “capital das Lofoten”, Svolvær, construída sobre várias pequenas ilhas ligadas por pontes, para deambularmos calmamente pelas suas ruas, cais e arredores. Ainda por cima, o Sol decidiu acompanhar-nos neste final de tarde! Alguns habitantes com quem conversávamos diziam-nos que, mesmo no Inverno, as temperaturas não se tornavam muito negativas… desde que não se fosse para as montanhas, na parte continental, onde facilmente desciam bem abaixo dos 40º C negativos… O que mais os abatia era a longa “noite polar”. Mas era tudo uma questão de hábito…

A primeira referência explícita que se conhece sobre Svolvær data de meados do século XVI. Mas a cidade deverá ser muito mais antiga, pois existem referências a povoados e igrejas próximas com mais de nove séculos de existência… Ainda hoje as coloridas e tradicionais casas de madeira sobre estacas e as armações, também de madeira, para secar o peixe fazem parte da paisagem.

O “Magic Ice”, mesmo junto ao cais, é a única galeria de gelo permanente no mundo. De uma forma artística, em luminosas esculturas de gelo, ilustra séculos de história de Svolvær e das Lofoten. O Museu da Guerra ilustra os conturbados tempos da II Guerra Mundial, desde a invasão germânica com as “gebirgsjäeger”, então consideradas as mais bem treinadas tropas especiais do mundo, até ao final da guerra, com destaque para o primeiro raide aliado, de 3 para 4 de Março de 1941. Este raide, realizado em condições climatéricas adversas, apanhou completamente desprevenidas as guarnições alemãs, tendo conseguido todos os objectivos estratégicos, sem o registo de qualquer baixa! Naturalmente que à data nada foi reportado, mas conseguiram-se também apreender dentro de uma das traineiras de pesca (a “Krebs”) um conjunto de rotores de reserva da máquina de codificação secreta alemã “Enigma”…





















Foto: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Svolvær, “capital das Lofoten”.

Continuámos por entre ilhas e fjords, sempre com Sol. Até tirámos uma fotografia ao meu relógio, que marcava meia-noite e cinco minutos, no que fomos seguidos por quase toda a gente que estava connosco na proa do navio!

Entrámos no pequeno e estreito, mas espectacular, fjord dos Trolls. À medida que avançávamos para o final do estreito fjord, não deixávamos de nos questionar sobre como o navio dali iria sair… Duas milhas náuticas em “marcha-à-ré”? Na zona final o fjord alargava um pouco e o navio conseguia virar a 180º… proporcionando uma vista de anfi-teatro, a partir do palco, a todos os presentes.

Em Março de 1890 a “Batalha do fjord dos Trolls”. O fjord, de apenas três quilómetros de comprimento, estava repleto de bacalhau e, na noite anterior, as embarcações a vapor tinham quebrado os gelos que cobriam o fjord. Bloquearam a entrada do fjord com as embarcações e, como forma de pagamento, exigiram aos pescadores uma apreciável fracção do peixe pescado. Os pescadores não aceitaram a exigência e procuraram quebrar a barreira de embarcações para entrarem no fjord, o que deu origem a uma verdadeira batalha. A ocorrência levou a que o tema fosse debatido no Parlamento e regulamentadas as questões das pescas nas ilhas Lofoten.




Foto: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Fjord dos Trolls, à meia-noite, com o Sol bem acima do horizonte.

A biblioteca do navio disponibilizava diariamente informação sobre os sítios por onde passávamos e a que horas, assim como história, características e outras curiosidades desses mesmos locais e dos seus habitantes. O difícil, mesmo, é conseguir a disciplina necessária para ir dormir a horas decentes quando, em pleno Verão ártico, viajamos nestas paragens…








Fotos: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Fjord de Raftsundet.

Fotos: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Fjord de Solberg.

A escala maior do dia de hoje, com várias horas, foi em Tromsø. Os registos pré-históricos apontam para que a primeira presença humana nestas paragens tenha ocorrido há mais de onze mil anos. Em 1252 construiu-se aqui a primeira igreja e durante os 550 anos seguintes, a povoação foi essencialmente um centro religioso com a única igreja da região. Só no final do século XVIII Tromsø passou a figurar no mapa económico da Escandinávia.

Aproveitámos para fazer uma completa visita guiada à cidade que, há cerca de uma década e meia (em Abril de 1997), registou o seu recorde de queda de neve… 240 cm de neve! Os “nativos” descreviam-nos o clima como tendo nove ou dez meses de Inverno bastante rigoroso, ainda que muito amenizado pelo efeito térmico da Corrente do Golfo, que ainda aqui chega, e dois ou três meses que não são tão bons para a prática do ski… Estávamos conversados!

Localizada numa ilha entre dois fjords e em tempos um grande centro de escala de navios baleeiros e a base das expedições ao Pólo Norte, Tromsø é hoje a sétima maior cidade da Noruega por população e a maior cidade na região polar da Escandinávia.






Fotos: Noruega // Arquipélago das Lofoten. Finnsnes, com o bom tempo a fazer sair das garagens algumas relíquias sobre rodas. Aliás, algo que nos habituámos a apreciar em toda a Escandinávia.

A sua catedral, a evocar um iceberg, é o ex-libris da cidade e tem aquele que é considerado o maior vitral em edifícios religiosos em todo o mundo. Aliás, a motivação para a construção e colocação deste vitral é bastante curiosa… Quando da sua construção, em 1965, a empena era em vidro para favorecer a entrada de luz. Acontece que o Sol incidia directa e implacavelmente sobre a Assembleia que, muito naturalmente, colocava óculos escuros… “Será que estão todos a dormir, escondidos por detrás das lentes escuras, ao invés de seguirem a homilia?” Ter-se-á perguntado o presbítero… Vai daí, colocou-se-lhe o vitral…

Não existe comboio em Tromsø (a rede ferroviária da Escandinávia pouco passa do Círculo Polar Ártico), mas existe um pub chamado “Jernbanen” (“Estação de Comboios”)! Situa-se a apenas três metros e meio acima do mar e a origem do nome faz apelo a um faraónico projecto ferroviário de 1872 que nunca chegou a ser concretizado… Construído por um excêntrico amante dos comboios, com partes verdadeiras de um comboio, hoje este pub é uma das maiores “unidades de negócio” da cidade, um autêntico local de culto, sempre cheio qualquer que seja a hora do dia ou da noite! E os níveis habituais de consumo de álcool desta gente… atiram-se muito para o lado do “sangue no álcool”… E não! Não é local para levar a família!











Fotos: Noruega // Tromsø.

Tromsø tem uma universidade, uma indústria cervejeira (produzem a excelente cerveja “Mack”), um jardim botânico, a já citada catedral e um planetário, todos reclamando o estatuto de serem os mais setentrionais do mundo. Estamos à mesma latitude da zona Norte do Alasca… O hospital central, um dos melhores a nível de ortopedia em toda a Escandinávia, ergue-se, muito apropriadamente, junto à pista de saltos de ski de Tromsø… É também em Tromsø que se localiza o radar Eiscat, o mais potente do mundo, realizando-se aqui importantes estudos das zonas altas da atmosfera. O Instituto de Geofísica conta com um observatório especial para o estudo das Auroras Boreais, junto do Lago Prestavnet. A universidade e os muitos centros de investigação transformaram-na numa cidade cosmopolita, com uma população jovem multi-cultural e multi-lingue. Este ar cosmopolita e, durante muito tempo, um mais fácil e directo contacto com os usos e costumes dos estrangeiros que a bordo das carreiras náuticas tocavam a cidade, do que com o resto do próprio país, levou a que se apelidasse Tromsø de “Paris do Norte”, embora a versão do povo Saami seja algo diferente… Durante o século XIX e, pelo menos, a primeira metade do século XX, as autoridades norueguesas procuraram eliminar a cultura Saami, desde o tipo de habitação ao acesso a terras aráveis, o seu modo de vida, a língua (que foi proibida) e o vestuário, que obrigatoriamente foi ocidentalizado… daí, a “Paris do Norte”. É um lado bastante negro da história da Escandinávia, de que nem a Noruega, nem a Finlândia, nem a Suécia (que chegou a esterilizar as mulheres de etnia Saami), se podem orgulhar… E as feridas desse passado recente ainda são notórias. Basta circular pela Lapónia, ver, falar com as pessoas…
















Fotos: Noruega // Tromsø.

À medida que nos aproximávamos do mar de Barents a paisagem tornava-se mais agreste e inóspita, com uma beleza mais selvagem. Contornámos o Sul da ilha de Magerøya, que desde 1999 se encontra ligada ao continente por um túnel submarino de quase sete quilómetros, e atracámos em Honningsvåg, a sua povoação mais importante. Foi tempo de tirar o “Pantera Negra” dos porões do “MS-Trollfjord” e de nos despedirmos da tripulação, de alguns dos passageiros (nomeadamente dos motards que, nas suas imponentes Harley Davidson, também demandavam o topo da Europa) e de uma inesquecível viagem marítima que, desde Trondheim nos trouxe até às portas do Cabo Norte. Voltávamos à “estrada”!


Fotos: Noruega // Skjervoy.






Fotos: Noruega // Majerøysundet.






Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Honningsvåg.


Ao invés de seguirmos direitinhos para o dito Cabo Norte, ainda a uma trintena de quilómetros mais a Norte, resolvemos explorar Honningsvåg e almoçar num simpático pub local, onde voltaríamos para jantar.

A povoação beneficia do efeito da Corrente do Golfo, o que faz com que os Invernos aqui consigam ser mais amenos do que em Oslo, quase três mil quilómetros mais a sul. Situada a 70º 58’ de latitude Norte e com menos de três mil habitantes, a povoação de Honningsvåg reclama o título de cidade mais setentrional do mundo… Título também reclamado por Hammerfest (também norueguesa, mas de maior dimensão), Barrow no Alasca e Longyearbyen no arquipélago norueguês de Svalbard, um milhar de quilómetros mais a norte…

Possui um dos maiores portos de cruzeiro do norte da Noruega, hotéis, um museu e uma igreja, construída em 1885 e que foi o único edifício não destruído pelos alemães quando da sua retirada na II Guerra Mundial. A pesca e o turismo são as actividades principais e o mar de Barents nunca gela. Também aqui se pode aplicar o adágio popular islandês sobre a meteorologia:

            - Não gostas do tempo?
            - Espera cinco minutos que já muda

Em poucos minutos pode-se passar de um Sol brilhante e quente… para uma violenta tempestade de neve! Tivemos sorte, pois apanhámos sempre bom tempo (na tal perspectiva de que nem choveu, nem nevou…).







  








Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Estrada para a Gjesvær, de onde partimos para uma visita à reserva integral de Gjesværstappan, as "ilhas dos pássaros".


Cruzámos a ilha de Magerøya para Oeste, até à povoação de Gjesvær de onde, a bordo de um género de “traineira grande”, partimos para a reserva integral de Gjesværstappan, as “ilhas dos pássaros”. Criada em 1983, é uma das maiores reservas de aves marinhas do norte da Europa. Não é permitido ir a terra e as águas em redor do arquipélago, com várias famílias de lontras marinhas, também fazem parte da reserva, fazendo-se a navegação num único navio e a muito baixa velocidade. O próprio comandante foi o cicerone de serviço! São milhares e milhares de aves marinhas, entre papagaios-do-mar, gaivotas, corvos marinhos, cormorões, gansos patolas, petréis glaciares, águias marinhas… numa autêntica explosão de vida. Lamentei não ter trazido uma máquina fotográfica com umas objectivas mais “a sério”…

Apenas umas três dezenas de quilómetros nos separavam agora do tal ponto mais setentrional da Europa continental. A paisagem à nossa volta, ainda que inóspita, tem um “quê” de mágico. Atrai-nos. Mesmo com os efeitos amenizantes da Corrente do Golfo o clima é agreste. Tirando alguns poucos e pequenos exemplares em zonas abrigadas, não há árvores. Apenas erva. Muita erva e, claro está, renas. “Carradas” de renas! Rebanhos inteiros, pertença do povo Saami (muitos ainda com as tradições nómadas bem vivas), deambulam livremente por toda a Lapónia. Campos, estradas, pontes e túneis… tudo é caminho para as renas. Afastam-se apenas por “vontade própria” e seguem sempre em frente, mesmo que em frente haja um veículo…

Embora só nos tivéssemos deparado com renas, por paragens nórdicas, ursos, alces, renas, veados, lobos e raposas no meio das estradas, dentro dos túneis rodoviários, onde e quando menos se espera, não são incomuns… São mesmo a principal causa de acidentes, danos nas viaturas e fatalidades ao longo das estradas norueguesas, suecas, finlandesas e russas (note-se que, por exemplo os alces…, são do tamanho de um cavalo)… Milhares de acidentes reportados em cada ano! Por toda Escandinávia sucede-se a sinalização rodoviária de perigo. Desde a nossa chegada à ponta sul da Noruega, em Kristiandsand, até ao topo norte do país, os sinais rodoviários de perigo (assim como a indicação dos locais onde tinham ocorrido mortes) foram uma constante. Sinalização que continuaria a marcar a sua presença em todas as estradas e caminhos, até às portas de Helsínquia, no sul da Finlândia!













  
Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Visita à reserva integral de Gjesværstappan, as "ilhas dos pássaros".


Não deu para ignorar os insistentes alertas que me fizeram quando partilhei as minhas intenções da nossa viagem e lá fiquei com um excelente pretexto para instalar um bom pára-choques com bull-bar no “Pantera Negra”… Um “ARB heavy dutty front bumper”, made in Australia (lá, têm os cangurús e wallabies à solta!). Os australianos, nestes temas de acessórios de protecção, são absolutamente imbatíveis. A qualidade é ponto assente, pois o que fazem é para funcionar bem, todos os dias, nas condições mais adversas, e para durar. Ok! Estão-se ainda um pouco nas tintas para o design fashion e para a estética… A verdade é que “resisti” durante muitos anos (quase 17 anos!) a colocar este tipo de pára-choques no Range Rover. Não gosto. Fica feio (estilo “trambolho”, e estou a ser simpático…). Descaracteriza-lhe a frente. É muito caro… Mas, quer se goste, quer não se goste, um pára-choques “a sério” é um factor de resistência e protecção. Lembro-me sempre de quando o veículo que ia à nossa frente se desviou do trilho e afocinhou desamparado, à noite, numa vala com mais de um metro de profundidade no Alto Atlas e não sofreu qualquer estrago! Nessa mesma viagem, mas já no deserto do Ergg Chebbi, ao passar a crista de uma duna deparei-me com três “jipes” calmamente parados, lado a lado, na vertente de descida da dita duna. Bati, claro! Foram mais de cinco mil euros de reparações no “Pantera Negra”… Com um bom para-choques e uma boa “bull-bar”, esses milhares de euros teriam passado para o seguro… e para as reparações do outro veículo, que praticamente nada sofreu, pois tinha o pneu sobressalente na porta traseira… Claro que guardo religiosamente na garagem todos os materiais de origem (pára-choques, estribos, etc.), pensando num dia, que espero nunca chegue, em que já não faça todo-o-terreno nem grandes viagens com o “Pantera Negra” e volte a montar tudo de novo.






Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Quase no Cabo Norte!



E chegávamos finalmente, ao fim de mais de sete mil quilómetros e de quinze dias de viagem bem preenchidos, ao planalto do Cabo Norte! O tal ponto mais setentrional da Europa continental, nos
71º 10’ 21” de latitude Norte.

- We’ve made it!!! We’ve made it!!! -

Diríamos nós, com as devidas distâncias para o “Camel Trophy”, onde um “derivado” desta expressão era utilizado como imagem de marca no final dos eventos.




Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. "Nordkapp" - Cabo Norte!!! We’ve made it!!!


Estávamos junto ao globo metálico que assinala o Cabo Norte, nos confins da Noruega. Acima da latitude de Prudhoe Bay, no topo Norte do Alasca… Quase à latitude de Tiksi, no Norte da Sibéria… Olhando para o “Mapa Mundi”, percebia-se a dimensão do trajecto e o quão longe se estava de tudo o resto.

A verdade é que, no fundo, até não era “nada do outro mundo”… Não tivemos que sair da “civilização”. Não tivemos de atravessar selvas, locais inóspitos, nem perigos desconhecidos. Não tivemos que afrontar doenças estranhas, nem “tribos hostis” com as pontas das flechas impregnadas de “cicuta”. Até os “elementos” nos foram favoráveis! Mas estávamos cá!!! Tínhamos planeado e feito uma viagem fantástica, algo longa para os nossos padrões habituais… e tínhamos atingido o objectivo a que nos tínhamos proposto! Chegar, juntos e no nosso próprio veículo (uma devida vénia ao “Pantera Negra”), ao Cabo Norte! YES!!!




Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. "Nordkapp" - Cabo Norte.


Foi uma sensação estranha, bela e inebriante! Inesquecível! Difícil mesmo de traduzir por palavras… Uma sensação partilhada por todos os viajantes ali presentes, novos e velhos, que sozinhos, em família, ou em pequenos grupos de amigos, de auto-caravana, de “jipe”, de carro, de moto ou de bicicleta, tinham percorrido milhares de quilómetros desde os seus países de origem, só para aqui estarem, só para aqui terem chegado. E todos, sem excepção, com uma bandeira do seu país! Naquele dia, éramos os que tínhamos vindo de mais longe, do Cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa continental. Felicitámo-nos, contámo-nos as histórias das nossas viagens, fotografámo-nos uns aos outros e deixámo-nos penetrar pela “magia” do local… À nossa frente, estendia-se o mar de Barents e o Oceano Glacial Ártico… até ao Polo Norte.

O planalto do Cabo Norte ergue-se em escarpa a 307 metros acima do nível do mar e, em boa verdade, não é sequer o ponto mais setentrional da Europa continental… Relativamente próximo, o Knivskjelloden (71º 11’ 08” de latitude Norte) está um quilómetro e meio mais “acima”, mas a exigir uma dura caminhada de 9 quilómetros… Aconselham inclusive todos os que decidam empreender essa caminhada, a deixar indicação dos seus nomes, contactos e da hora a que partiram nos para-brisas dos veículos, para que as equipas de socorro possam partir em seu auxílio, caso não regressem em tempo “normal”, ou as inconstantes condições climatéricas se tornem perigosas. Se não nos restringirmos à área dita “continental”, então o topo Norte da Europa fica na ilhota de Rossøya, a Norte de Spitsbergen, nas Svalbard (81º 49’ 44” de latitude Norte)…

O “Cabo Norte” começou a ficar conhecido e a ser utilizado como ponto de referência de navegação quando o explorador britânico Richard Chancellor o contornou, em 1553, quando navegava em busca de uma passagem Nordeste por via marítima. Baptizou-o de “Cabo Norte”. Só mais de um século depois, em 1664, o planalto foi escalado pelo primeiro “turista”, se assim lhe quisermos chamar… O padre italiano Francesco Negri levou dois anos, a pé, a cavalo, de trenó, de skis, de barco… até o atingir. Terá escrito no seu diário de viagem:

            - Aqui estou eu no “Cabo Norte”, no ponto mais extremo da Finmark. Realmente, estou no fim do mundo!

Nos séculos seguintes chegar ao “Cabo Norte” continuou a ser uma aventura arriscada e… muito cara! Entre os distintos viajantes dessas eras, destacam-se o Príncipe Louis Phillipe de Órleans, o Rei Oscar II da Noruega e Suécia, o Rei Chualalonkorn do Sião (hoje, Tailândia) e o Imperador Wilhelm II da Alemanha. Em 1875, Thomas Cook, um agente de viagens londrino, terá organizado a primeira viagem de grupo, para duas dúzias de pessoas, até ao “Cabo Norte”. Todos eles atraídos pela agreste, mas espectacular, beleza natural do local.












Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. "Nordkapp" - Cabo Norte.


O globo metálico que assinala os 71º 10’ 21” de latitude Norte e 21º 47’ 40” de longitude Leste, só foi construído em 1978. Também recente é o arranjo do terraço, assim como o pavilhão do “Cabo Norte”, com restaurantes, bares, lojas, posto de correio, museus, cinema onde se pode ver um filme sobre a zona, um túnel escavado na rocha por onde se pode descer até ao Miradouro do Rei e, ao mesmo tempo, admirar as galerias onde é retratada e explicada a história do “Cabo Norte” e dos seus primeiros viajantes. Não falta sequer, uma pequena capela para os Crentes. No exterior, do lado oposto ao obelisco do Rei Oscar II, encontra-se o “Monumento às Crianças do Mundo”, concebido por crianças de vários continentes, sob o mote “Paz na Terra”.

Mais umas brincadeiras com a neve acumulada no “Miradouro do Rei”, mais umas voltas pelo planalto, mais umas fotografias, mais uns longos minutos de olhares perdidos no oceano… e despedimo-nos do “Cabo Norte” e dos motards alemães e holandeses que tinham estacionado ao lado do “Pantera Negra”. Foi uma curiosa constante ao longo de toda a viagem… Sem nenhuma intenção especial, acabávamos sempre com o “jipe” estacionado, precisamente, junto de “jipes” e de motos…







Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya.



Por momentos, recordámo-nos “perigosamente” do que aprendemos nos bancos da escola e dos limites da Europa continental, que então nos tinham ensinado… Cabo da Roca a Oeste, Cabo Norte a Norte, Cordilheira do Urais a Leste e Ilha de Creta a Sul… Dois desses limites já estavam vistos… Aliás, três! Se não quisermos “ilhas” e considerarmos o Sul da Europa continental em Tarifa…

Pouco depois, cruzávamo-nos com um casal de suíços com a idade dos nossos pais, na estradinha de acesso ao Cabo Norte e que viríamos a encontrar no mesmo hotel que nós, em Honnigsvåg. Estavam a fazer a viagem num imaculado Rolls-Royce Phantom do início dos anos sessenta do século passado!





Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Skarsvag.


Escusado será dizer que não seguimos directos para Honnigsvåg… Os mapas russos que consegui encontrar e carregar no OziExplorer CE (a correr num vetusto Compaq iPaq 3850) deram uma grande ajuda, mesmo sem perceber grande coisa daquele alfabeto... Visitámos as poucas, mas encantadoras povoações e portos de pesca, os aldeamentos do povo Saami, e foi já bem tarde, ainda que com o Sol sempre bem alto, que estacionámos o “Pantera Negra” junto ao hotel, respeitosamente atrás do Rolls Royce Phantom dos suíços… Faziam uma dupla com imensa classe!

Por um “estranho acaso” do planeamento da viagem…, hoje era o meu dia de aniversário… 46 anos, celebrados no topo Norte da nossa velha Europa!!!

Despedimo-nos dos suíços e calmamente demos mais uma volta por Honnigsvåg. Seguimos depois ao longo da costa até ao túnel “Nordkapptunnelen” que, com quase sete quilómetros, liga a ilha de Majerøya ao continente. Descemos pela estrada costeira todo o fjord de Porsanger até Lakselv, sem perder uma ida à praia, só para ver a temperatura da água (até estava boa!).


Fotos: Noruega // Ilha de Majerøya. Honningsvåg, com dois "clássicos" estacionados à porta do hotel.


Já nos íamos habituando às renas no meio da estrada… mas não estávamos à espera que esses bichos convocassem “assembleias gerais” de rebanho para o interior de um túnel, numa curva! Toda a gente a travar a fundo…! Passámos com cautela para não assustar os bichos… E estacionámos já fora do túnel e da estrada para fotografar a “cena”. Enquanto trocava rapidamente as baterias da máquina fotográfica, pedia à nossa filha para tirar fotografias com a máquina dela…

            - Então? Conseguiste fotografar as renas ainda dentro do túnel?
            - Dentro do túnel?!! Esperei que saíssem para as fotografar cá fora…

Ok! Ainda tinha tirado umas fotografias enquanto conduzia e antes das baterias se esgotarem…


Fotos: Noruega // Descemos pela estrada costeira todo o fjord de Porsanger até Lakselv, sem perder uma ida à praia em Repsvag.


Continuámos pela Lapónia norueguesa até Karasjok, sede do Parlamento Saami na Noruega e de várias instituições ligadas a este povo. Cerca de 80% da população local fala um ou mais dos dialectos Saami. Estamos numa espécie de mundo diferente, mais “sombrio”, onde o peso do isolamento, quer geográfico, quer cultural, não pode ser ignorado. É uma outra Noruega… menos bonita, menos atraente, menos limpa, menos cuidada, menos bem organizada… a começar pelo próprio edifício e zonas limítrofes do tal Parlamento Saami… Uma zona definitivamente fora do radar do turismo. Ainda assim, encontrámos duas francesas que, também em Land Rover, estavam a fazer uma volta na Escandinávia. Também seguiam para a Finlândia, mas primeiro ainda queriam subir até Kirkenes, próximo da fronteira com a Rússia.









Fotos: Noruega // "Encontros imediatos dos 3º grau" com as renas em Sturenanjunni.


Deixámos a “Trans-Norueguesa” E6, que seguia para Kirkenes e enveredámos pela Rv92, entrando na Lapónia finlandesa em Dorvonjárga. O trajecto levou-nos a Inari e a Ivalo, nas margens do enorme lago Inarijärvi, onde toda a gente em centenas de quilómetros ao redor se vai abastecer regularmente, de onde seguimos para a estância de férias (essencialmente de Inverno!) de Saariselkä.

Entrámos no coração da Lapónia finlandesa, plena de planícies com rectas imensas, ladeadas de algumas montanhas e florestas de coníferas que ocultavam o rendilhado dos lagos e pântanos. Uma das maiores áreas “selvagens” da Europa, com a dimensão de um país como Portugal… As povoações são escassas e distantes entre si. Passam facilmente despercebidas, a menos que se procurem. Tal como na Noruega, as tropas do III Reich destruíram quase tudo quando da sua retirada, aplicando uma verdadeira e assustadoramente medieval política de “terra queimada”.




Fotos: Noruega // As longas rectas de Gottetvarri e a cidade de Karasjok, onde se encontra a sede do Parlamento Saami.



A etnia Saami é ainda dominante nestas paragens, mantendo há milénios um precário equilíbrio de vida com o ambiente, muitas vezes hostil, do ártico. Muitos ainda mantêm uma base nómada, pastoreando rebanhos de renas.

Antes de nos dirigirmos à pacatez de Saariselkä, ainda subimos ao topo do Kausnipää, ao que nos contaram, o mais setentrional resort de ski do mundo… de onde partem uma série de pistas e trilhos bastante apelativos! Um desses trilhos, de razoável bom piso, desemboca mesmo no resort de Saariselkää…



Fotos: Finlândia // Entrada na Finlândia e as longas rectas rodeadas de florestas e lagos em Kaamasmukka e Inari.



Fotos: Finlândia // Kaunispää.



Fotos: Finlândia // Saariselkää.

Hoje voltávamos a cruzar o Círculo Polar Ártico, em Rovaniemi.

Mas antes disso, ainda fizemos uma longa paragem em Tankavaara e no seu museu internacional do ouro, único no mundo! Depois de uma sessão no auditório, simpaticamente só para nós… em inglês, onde se fazia um enquadramento geral da exploração aurífera em Tankavaara e no mundo, o museu presentava-nos com um vasto e bem enquadrado conjunto de exposições, esculturas, mecanismos e dioramas em tamanho real que ilustravam os vários aspectos da exploração aurífera ao longo dos milénios, nas várias civilizações e um pouco por todo o mundo. No exterior, era recriado o ambiente de uma povoação vocacionada para a exploração do ouro, com tudo o que isso envolvia, quer em termos técnico, quer em termos sociais. Havia, inclusive, a possibilidade de se tentar a sorte no garimpo! Mais uma vez, deixámos no livro de visitas uma mensagem de felicitações em português, mas também em inglês e francês, que isto é gente do Sul…, mas bastante “culta”…

Encontrámos aqui um sinal de perigo que nunca tínhamos visto… a alertar para o perigo dos mosquitos! Não há malária, mas a verdade é que em toda a Escandinávia, nas zonas húmidas, o Verão regista algumas mortes devido a complicações provocadas pelos mosquitos! Claro que as doses generosas de DEET (N,N-dietil-meta-toluamida) a uns míseros 20%, que é o que se consegue adquirir em Portugal e que sempre me acompanha, não fizeram qualquer efeito, tendo eu saído dali todo picado… Bem, pelo menos sempre servi de “protecção” para os outros membros da família que saíram incólumes… É o normal. Para os mosquitos a minha presença deve ser associada a qualquer coisa do estilo “happy hour”…








Fotos: Finlândia // "Museu Internacional do Ouro", em Tankavaara.

A próxima paragem levou-nos, de novo, a cruzar o Círculo Polar Ártico (que em bom finlandês se designa por “Napapiiri”), desta vez em Rovaniemi. O local é assinalado pela “Casa do Pai Natal”…, um enorme complexo de lojas, lojinhas, centros de actividades e restaurantes, unicamente destinados a extorquir tantos Euros quantos se consigam aos incautos e possivelmente deslumbrados turistas que aqui são despejados às “carradas”… Enfim, pouco apelativo, “to say the least”…

Não sou grande fã do McDonald’s… Mas não poderia nunca deixar de honrar o McDonald’s mais setentrional do mundo! Seguimos pois para a cidade e para o dito McDonald’s, colecionando mais uma passagem e visita a “… qualquer coisa, mais setentrional do mundo”!












Fotos: Finlândia // Rovaniemi. Passagem, no sentido Sul, pelo "Napapiiri" - Círculo Polar Ártico e os reabastecimentos no McDonnald's mais setentrional do mundo.

Deixámos definitivamente o “ártico” e a Lapónia, e a parte da tarde levou-nos à Suécia, que eu já conhecia. Enfim, confessemos que foi uma volta razoavelmente rápida, um pouco “à japonesa”. Como em muitas regiões fronteiriças, também aqui a identidade cultural entre os povos de ambos os lados da fronteira é bastante forte, para além de dependerem economicamente uns dos outros e de falarem indistintamente ambas as línguas.

Fotos: Suécia // Haparanda.

Deixámos a Suécia em Haparanda e regressámos à Finlândia por Tornio (no auto-estrada “mais setentrional do mundo”…), com destino à estância balnear de Oulu, nas margens do golfo da Bótnia. Transformada, nos últimos anos, numa espécie de Silicon Valey da Finlândia, Oulu é a maior cidade do norte da Escandinávia, depois de Tromsø. Ao que nos disseram, a grande força dinamizadora desta “nova Oulu”, foi a Universidade muito orientada para os temas da Engenharia Electrotécnica e dos Sistemas de Informação. A consistência na disponibilização de “talento” nestas matérias, levou a que um significativo número de empresas, nacionais e internacionais, ligadas às áreas de tecnologia aqui se tenham vindo instalar. Grande parte dos produtos da Nokia são aqui desenhados e produzidos e a cidade é uma referência no mundo da Internet e das novidades dos acessos wireless.

Enquanto procuravamos um lugar de estacionamento no parque do hotel, um finlandês fez-nos sinal de que ia sair… Quando passou por nós vendo a matrícula do nosso “jipe”, baixou o vidro do carro e, enquanto eu lhe agradecia, disse, no seu melhor português… “Benvindos!”. Ficámos verdadeiramente, de “alma lavada”…

Apesar de já estarmos em Julho e umas duas centenas de quilómetros abaixo do Círculo Polar Ártico, ainda tirámos umas fotografias na praia, às onze e tal da “noite”, com o Sol bem acima da linha do horizonte.

Fotos: Finlândia // Oulu.

Deixámos as praias de areia e as aldeias piscatórias do Golfo da Bótnia e inflectimos para o interior, para a “tuhansien järvien maa”, a “Terra dos mil lagos”, o “Lake District”… Para os mais “kotas”, ainda a terra do “Rally dos Mil Lagos” (hoje “Rally da Finlândia”) que desde 1951 foi o palco privilegiado para os “nórdicos voadores”. Ao que me recordo, apenas quatro pilotos “não nórdicos” lograram alguma vez vencer esta exigente e extremamente rápida prova (Carlos Sainz, Didier Auriol, Markko Märtin e Sébastien Loeb).

É uma região única em toda a Europa ocidental, em que um terço é coberta por rios e lagos, pontilhados de ilhas e ilhotas, tudo enquadrado por densas florestas de coníferas. Em tempos uma zona muito orientada para a indústria madeireira e do papel, hoje o foco económico reorientou-se mais para o turismo e para o lazer. O futuro dirá se é uma orientação sustentável a longo prazo mas, de qualquer das formas, a Finlândia é um país é imenso, cheio de recursos naturais e com uma população de apenas cinco milhões e meio de almas.

Para melhor apreciar a envolvente, nas imediações de Kuopio resolvemos subir às torres de saltos de ski, que recebem uma importante competição anual desta modalidade, e à própria torre de Puijo. Passei a admirar mais aquela gente que, com umas “tabuazitas” nos pés, se lançam daquelas alturas…

Com um restaurante rotativo no alto dos seus 75 metros, a torre de Puijo, situada no topo de uma colina de 150 metros de altitude, oferece vistas ímpares sobre a paisagem em redor. Um “must see” para todos os que cruzam estas paragens. Só não consegui perceber por que carga de água é que o restaurante e a cafetaria não tinham os famosos (pelo menos naquela zona…) pastéis de peixe finlandeses, os “Kalakukko”…










Fotos: Finlândia // Kuopio.

Quando estava a “alinhavar” o trajecto da viagem e a procurar saber o que valeria mesmo a pena ver e fazer ao longo do caminho, reparei numa referência a um tal “Mekaanisen Musiikin Museo”, em Varkaus. Como ficava em caminho, resolvemos dar o benefício da dúvida a este “Museu da Música Mecânica” e fazer uma visita rápida… que acabou por nos ocupar uma boa parte da tarde. E ainda bem!

Ao que parece, éramos os primeiros portugueses a visitar aquele museu! Embora que, no grande mapa mundi que ornamentava a recepção e onde os visitantes assinalavam a sua origem, já houvesse uma cruzinha em Lisboa… Juntou-se-lhe mais uma cruzinha, a assinalar Abrantes!

Este é o maior museu do género no Norte da Europa e um dos quarenta existentes em todo o mundo. Toda a história da música mecânica, de 1850 até ao presente, está ali representada, pronta a ser “vista” e ouvida. Music boxes, pianos mecânicos, violinos mecânicos, acordeons mecânicos, órgãos mecânicos, um exemplar do magnífico órgão de rua “Amadeus”, um exemplar do Popper Goliath, o maior equipamento alguma vez construído e que reproduzia orquestrações com setenta e cinco instrumentos, numerosos gramofones e juke boxes e tudo o mais que se pudesse imaginar para armazenamento e reprodução de música. Um total de quatro centenas de equipamentos constitui o acervo do museu, que também se dedica ao seu restauro e completa recuperação.

Tivemos direito a uma visita guiada só para nós e conduzida por dois dos responsáveis deste fantástico museu que não se pouparam a esforços para nos darem uma descrição detalhada da história da mecanização da música, dos equipamentos mais emblemáticos e do seu funcionamento, dos contextos em que surgiram… Deixaram-nos mexer nos aparelhos, mostraram-nos os seus mecanismos “escondidos”. Enfim, indescritível mesmo! De perder a noção do tempo.


















Fotos: Finlândia // "Museu Internacional da Música Mecânica", em Varkaus.

E chegámos às “portas de Helsínquia” sem ver um único alce! Nem um único urso, embora que esses estejam mais confinados às proximidades da Rússia. Dado o perigo real que qualquer “encontro imediato do 3º grau” com essa bicharada representa, a nossa condução foi sempre muito atenta e defensiva, com atenção redobrada às estradas, aos caminhos, às florestas envolventes e, muito especialmente, às pequenas clareiras e outras zonas assinaladas como sendo de passagem provável desses animais. A verdade é que, quando no hotel comentámos o tema dos alces, a recepcionista nos disse que os únicos que tinha visto na vida, os tinha visto precisamente nos arredores de Helsínquia no trajecto casa – trabalho…

Como só embarcávamos ao final da tarde do dia seguinte, aproveitámos para conhecer melhor esta cidade, fundada em 1550 pelo Rei Gustav Vasa da Suécia, como forma de contrariar o crescente domínio russo nas águas do Báltico. No entanto, só um século depois a cidade se conseguiu afirmar minimamente.


















Fotos: Finlândia // Helsínquia.

O peso da Rússia na cultura, economia e arquitectura finlandesas é notória. Os edifícios mais antigos reflectem uma clara inspiração na Rússia dos Czars, parecendo às vezes uma cópia dos encontrados em São Petersburgo. Mesmo ao lado, erguem-se blocos graníticos cinzentos muito “à la URSS”, assim como formas diferentes e mais arrojadas, tentando dar vida à independência intelectual e cultural de uma nova Finlândia, orgulhosa das suas próprias raízes. É latente a escassa simpatia que os finlandeses dispensam aos russos… Só que dependem em grande medida desses “vizinhos”.

A zona nobre e mais apelativa da cidade está rodeada pelas águas do Golfo da Finlândia por três lados e tudo se encontra relativamente próximo.

De manhã cedo aproveitei para procurar fazer uma pequena manutenção, mais cuidada, no “Pantera Negra”. Ainda faltavam muitos milhares de quilómetros até ao lar e convinha verificar níveis e lubrificar a transmissão… No hotel indicaram-me uma “Bosh Car Service”… Notei que não sabiam  mexer no Range Rover. Sugeriram-me que fosse à “HuOltoRep Oy”, uma conceituada oficina que representava a Land Rover.

Bem… Numa segunda-feira de manhã, sem qualquer marcação, aparecer numa oficina de marca cheia de veículos e com o pessoal super atarefado, não augurava grande sucesso… Lá expliquei a situação, quem era, de onde vinha, a viagem que estava a fazer, para onde ia… Lá se conversou um pouco sobre os sítios por onde tinha-mos passado e o que tinha-mos visto… Louvores à marca “q.b.” e aquele eterno “Espírito Land Rover” de entre-ajuda e partilha. Aquele “espírito” que leva a que, quando dois Land Rover se cruzam algures pelo mundo, os condutores e demais ocupantes se saúdem mutuamente!…

O responsável da oficina deslocou um mecânico que se encontrava a trabalhar noutro carro, para tomar devida conta do “Pantera Negra”. Um indivíduo que trabalhava há dezassete anos com a Land Rover e que viu e reviu tudo o que eu tinha pedido e também o que lhe não tinha pedido mas que devia ser visto. Um profissionalismo de louvar.

Entretanto, dediquei-me a admirar a oficina, que não trabalhava apenas com a Land Rover... Era um autêntico “paraíso”… Vários Land Rover e Range Rover… Vários Mercedes, da AMG… Vários Rolls Royce, entre eles, um Camargue… Vários Bentley, entre eles, um Speed Six… Vários Jaguar, entre eles, um XK150… Um Lamborghini 350GT… Um Chevrolet Corvette… e eu a pensar no quanto me iriam cobrar pelo serviço ao “Pantera Negra”… Ainda não tinha esquecido as referências dos preços na Escandinávia, nem tão pouco que o plafond internacional de reboque do “ACP”, que na generalidade dos países é mais do que suficiente, na Dinamarca não tinha sequer dado para pagar a taxa de saída do reboque… Sentia-me a “amarelecer”…



Fotos: Finlândia // Helsínquia. O "Pantera Negra" em boa companhia e, depois da manutenção feita, do novo prontos para embarcar, descansar e apreciar mais um “mini-cruzeiro” no congestionado mar Báltico.

Surpresa das surpresas! Pois cobraram-me exactamente o que as oficinas tipo NorAuto e Roady me costumam cobrar por idêntico serviço, em Portugal! Cinco estrelas! O tal “altar” em que eu já tinha os nórdicos levou mais um manto de prata… Gostámos mesmo dos escandinavos!

Depois de termos desfrutado de um dia belíssimo e soalheiro em Helsínquia, embarcámos às sete da tarde no “MS-SuperFast VIII”, da companhia Talink Silja, com destino a Rostock, no norte da Alemanha. Embarcámos, nós… e uma “multidão” de russos em veículos topo de gama… De facto, para quem viva na zona de São Petersburgo, esta é a maneira mais rápida e económica de ir até ao Sul de França com a família, para umas belíssimas férias ao Sol.

Foi tempo para descansar e apreciar mais um “mini-cruzeiro” no congestionado mar Báltico.





Na velha Europa, de novo…


"Entre este mar e o Tánais vive estranha
Gente: Rutenos, Moseos e Livónios,
Sármatas outro tempo; e na montanha
Hircínia os Marcomanos são Polónios.
Sujeitos ao Império de Alemanha
São Saxones, Boêmios e Panónios,
E outras várias nações, que o Reno frio
Lava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio.
(…)
Gália ali se verá que nomeada
Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo,
Que do Séquana e Ródano é regada,
E do Giruna frio e Reno fundo.
Logo os montes da Ninfa sepultada
Pirene se alevantam, que segundo
Antiguidades contam, quando arderam,
Rios de ouro e de prata então correram…” – Camões – “Os Lusíadas”, Canto III

Atracámos às nove da noite do dia seguinte em Rostock. Como não tinha carregado os mapas da Alemanha no GPS, encontrar o hotel, à noite, foi feito à moda antiga, de mapas Michelin na mão, a olhar para os nomes de ruas e praças e a perguntar indicações aos indígenas… Ainda apanhámos o restaurante aberto!

Saímos mais tarde e sem grandes pressas de Rostock. O dia estava destinado a atravessar a Alemanha e chegar ao Luxemburgo. Apesar de a generalidade do trajecto ser cumprida em auto-estradas sem limite de velocidade, o “Pantera Negra” pede para ser conduzido calmamente, em torno dos 120 - 130 km/h… Ainda colocámos a hipótese de fazer uns desvios a Hamelin, palco do conto “O flautista de Hamelin”, dos irmãos Grimm, ou mesmo a Minden, onde o Mittellandkanal (o maior canal da Alemanha, com 326 quilómetros de extensão) passa sobre o rio Wesser. Como já conhecíamos razoavelmente bem toda aquela zona da Westfalia, acabámos por só fazer as pequenas paragens “técnicas” e uma paragem maior para visitar Colónia e a sua catedral, que não conhecíamos.


Fotos: Golfo da Finlândia e mar Báltico.

Construída entre 1248 e 1880, é a maior e mais imponente catedral gótica do centro-norte da Europa, sendo um local de peregrinação para muitos Cristãos. Em 1996 passou a integrar a lista do Património da Humanidade, da UNESCO. Quem se dispuser a subir os 509 degraus da escada em caracol é premiado com uma das melhores vistas sobre a cidade e sobre o rio Reno… Se estiver um daqueles céus de “chumbo” e a chover, não se cansem… Pois!

Vale a pena uma visita demorada ao interior da catedral, apreciando a sua história, a sua arquitectura, os seus vitrais e os seus tesouros e relíquias.

Como continuasse a chover a “potes”, não prolongámos a estadia em Colónia e seguimos viagem para o Luxemburgo, onde chegámos já ao final do dia.





Fotos: Alemanha // Catedral de Colónia.

Deixámos para a manhã do dia seguinte uma visita ao Grão-Ducado do Luxemburgo, especialmente à sua capital, a cidade do Luxemburgo, sede de vários organismos e instituições europeias. É o último Grão-Ducado ainda existente no mundo. Possui uma Monarquia Constitucional, uma economia desenvolvida e um PIB per capita que é dos mais elevados do mundo, sendo que o seu PNB per capita é mesmo o mais elevado do mundo. Com 20% da sua população constituída por portugueses, tem no português a sua quarta língua mais falada, logo atrás das três línguas oficiais, o luxemburguês (mais um dialecto alemão, que outra coisa!), o francês e o alemão. Sentimo-nos verdadeiramente, “em casa”! Um excelente local para residir e trabalhar, bonito, bem organizado e seguro, embora que os ventos da crise já se fizessem sentir com grande intensidade, segundo nos disse um dos portugueses com quem falámos.














Fotos: Grão-Ducado do Luxemburgo // Cidade do Luxemburgo.

Deixámos o pequeno Estado do Luxemburgo e entrámos em França, seguindo para as planícies de Verdun, palco da mais longa batalha da Grande Guerra, e da segunda mais sangrenta, logo a seguir à batalha do Somme. Os franceses ganharam esta batalha e ficou célebre a frase do General Philippe Pétain sobre os alemães:

            - Vous ne les laisserez pas passer, mes camarades!

E, de facto, os alemães não passaram. Paris não foi ocupada e a França não reviveu o pesadelo da guerra franco-prussiana do final do século XVIII, mas entre Fevereiro e Dezembro de 1916, perderiam a vida nestas planícies cerca de 260.000 militares de ambos os lados, em cerca de 700.000 “baixas” militares. Enfim…

Estabelecemos a nossa “base” em Blois e dedicamos os dias seguintes a apreciar os vales do Loire, do Chèr, do Cossom e do Indre, assim como a visitar alguns dos “châteaux” e construções mais emblemáticas, a atravessar as suas florestas, parques e jardins, a visitar o fluviário do vale do Loire... e a tentar dar uma voltinha de helicóptero sobre a zona!

O vale do Loire (que agrega também os vales dos rios adjacentes, Chèr, Cossom e Indre) é uma terra fértil na zona central do país, próxima de Paris e onde Reis e Cortes viveram, caçaram e governaram. O rio Loire é o maior de França, com 1020 quilómetros de extensão.

Ao longo dos séculos, os “châteaux” do vale do Loire foram evoluindo de castelos feudais com funções puramente defensivas, para grandiosos e exuberantes palácios renascentistas e clássicos, onde o conforto e a elegância passaram a ser os símbolos de estatuto. Muitas das antigas características defensivas, como as torres e os baluartes, foram modificadas e redecoradas, os fossos passaram a lagos ao serviço do lazer e os artífices renascentistas desenharam e construíram escadarias, galerias, ornamentações e jardins grandiosos.

Começámos pelo maior e mais imponente, o “château de Chamborg”, inscrito na lista do Património da Humanidade, da UNESCO. Apesar da sua imponência e colossais dimensões, Chambord tem um “toque” único de graça e perfeito equilíbrio.

Começou como um simples pavilhão de caça no meio da floresta de Boulogne… Francisco I apenas aqui viveu 72 dias, não chegando a ver a conclusão das obras que se prolongariam pelos reinados de seu filho Henrique II e de Luís XIV, fazendo de Chambord o “château” de todos os exageros, com 156 metros de comprimento por 56 metros de altura, albergando 426 divisões, 77 escadas e 282 chaminés. A inovadora escadaria dupla do torreão central, cujo estudo é atribuído a Leonardo Da Vinci, é considerada uma das obras-primas do período renascentista em França. É formada pelo entrançado de duas escadas em caracol que se desenvolvem em torno de um núcleo central, oco. Duas pessoas que utilizem, cada uma delas, um dos lances de escadas, vêem-se através das aberturas ornamentadas, mas nunca se encontram. A riqueza da arquitectura, dos trabalhos em pedra calcária, dos interiores, do mobiliário, das pinturas e esculturas não deixam ninguém indiferente.









Fotos: França // Vale do Loire. Château e parque de Chambord.

Chambord possui também aquele que é considerado o maior parque florestal, fechado entre muros, do mundo. São 5440 hectares, a área da cidade de Paris, rodeados por dezenas de quilómetros de muros e seis portões de acesso. O parque possui uma reserva nacional de caça, com uma imensa fauna em liberdade, e 800 hectares são mesmo visitáveis, com os vários caminhos e trilhos devidamente sinalizados. Parece que só eu é que vi os javalis que se escapavam para o interior da floresta… As “damas” iam a olhar para o outro lado.


 Fotos: França // Vale do Loire. Blois.





Fotos: França // Vale do Loire. Amboise.



Fotos: França // Vale do Loire. Château de Amboise.

Na manhã seguinte descemos o Loire até Amboise, visitámos a cidade, vimos pelo exterior o seu “château” e dedicámos bastante tempo a visitar o “château” de Closs Lucé, onde terá vivido Leonardo Da Vinci, a partir de 1516, os três últimos anos da sua vida. O grande génio do renascimento está sepultado em Amboise, na capela de Santo Hubert. Closs Lucé, para além de um impressionante espólio de arte e mobiliário, comum à generalidade dos “châteaux” do vale, tem uma impressionante colecção de esboços e de maquetes, à escala e em tamanho real (estas, maioritariamente nos seus magníficos jardins) dos estudos e protótipos construídos por Leonardo Da Vinci, devidamente explicadas por textos e apresentações multimédia, permitindo inclusive e nalguns casos a sua manipulação e operação pelos visitantes. São quatro dezenas de modelos de máquinas concebidas com quatro séculos de avanço sobre a sua época. Estudos, descobertas e invenções nas áreas da anatomia, das engenharias civil e militar, da mecânica e da óptica, da hidráulica e da aeronáutica… Uma ponte rotativa, um barco de pás, um antepassado do avião, do helicóptero e do automóvel, carros de combate, canhões rotativos, um pára-quedas, o rolamento de esferas… Todos os modelos foram realizados com o patrocínio da IBM, segundo os desenhos originais de Leonardo Da Vinci. Uma sublime e “viva” aula de história, de arte e de engenharia. Provavelmente, o ponto “mais alto” de uma qualquer visita ao vale do Loire.









Fotos: França // Vale do Loire. Château de Closs Lucé.

Almoçámos em Amboise, comprovando a minha velha teoria de que não se deve chegar com fome a nenhum restaurante francês, sob pena de se morrer de desfalecimento antes de sermos servidos…

De tarde, seguimos pela floresta de Amboise até ao Pagode de Chanteloup, num estilo “mais ou menos achinesado” e que, juntamente com o lago, é o que resta do outrora esplêndido “château” de Chanteloup. Do topo do pagode tem-se uma impressionante vista a 360º de Amboise e do vale do Loire adjacente.

Fotos: França // Vale do Loire. Pagode de Chanteloup.

Seguimos para o rio Chèr e para aquele que é considerado o mais belo de todos os “châteaux”, Chenonceau, que reflecte a influência de cinco mulheres que marcaram a história de França. Catarina de Briçonnet, que supervisionou a construção do castelo; Diana de Poitiers, amante de Henrique II, que construiu a ponte sobre o rio Chèr e desenhou o jardim formal; Catarina de Médicis, que após a morte do marido, Henrique II, reclamou a propriedade de Chenonceau e mandou construir a galeria sobre a ponte; Luísa de Dupin, que conseguiu que o edifício não fosse arrasado durante a revolução francesa e, finalmente, Madame Pelouze que adquiriu o castelo no século XIX e o restaurou.

O “château” de Chenonceau tem uma das maiores colecções de obras dos grandes mestres da pintura, como Murillo, Tintoretto, Nicolas Poussin, Corregio, Rubens, Primaticcio ou Van Loo, assim como uma selecção de raras tapeçarias da Flandres do século XVI. Um autêntico museu!



Fotos: França // Vale do Loire. Château de Chenonceau.

O final da tarde levou-nos ainda a uma visita aos dois hectares do Parque dos “Mini-Châteaux”, com réplicas detalhadas de quase todos os “châteaux” do vale do Loire, à escala 1:25. Seguimos ainda para o “château” de Cheverny, que já só conseguimos ver a partir do exterior. Este foi o primeiro dos “châteaux” do vale do Loire a não contemplar quaisquer elementos defensivos na sua construção e contém a mais rica colecção de mobiliário de todo o vale do Loire. Já no século XX, Cheverny serviu de inspiração a Hergé para a criação do castelo de Moulinsard nas aventuras de Tintin.


Fotos: França // Vale do Loire. "Parque dos Mini-châteaux".

Fotos: França // Vale do Loire. Château de Cheverny.

Esta noite começava o “1º Festival de Chambord”, celebrando o seu trigésimo aniversário como Património da Humanidade da UNESCO, com interpretações de Mozart, Glock e Beethoven…

Mesmo com uma grande dose de flexibilidade, convém não nos distanciarmos muito dos planos de viagem… Era dia de deixarmos o encantador vale do Loire. Aproveitámos para visitar o “Aquarium du Val de Loire” que, com os seus 53 tanques e mais de 10000 espécies, é considerado o maior fluviário da Europa. Uma autêntica “pérola” que, pelo que nos apercebemos, passa ao lado da maioria dos turistas que demandam a zona, infelizmente.


Fotos: França // Vale do Loire. "Fluviário do Vale do Loire".

Seguimos depois para Azay-le-Rideau, uma povoação geminada com a vila alentejana de Nisa (não tem mesmo nada a ver!). O “château” de Azay-le-Rideau foi descrito por Balzac como “um diamante lapidado nas margens do rio Indre”.


Fotos: França // Vale do Loire. Château de Azay-le-Rideau.

Procurámos também dar um baptismo de voo em helicóptero à nossa filha com uma boa volta nos céus do vale do Loire. Era uma surpresa, não muito bem guardada… Mas a meteorologia não estava pelos ajustes e, desde o início da manhã, que uma forte ventania se fazia sentir em toda a região… Ainda estacionámos o “Pantera Negra” ao lado de um apelativo e possante Westland-Agusta, na pista do aeródromo de Amboise-Dièrre, mas a manga de vento era bem clara. Não havia mesmo condições de descolagem em segurança… Ficou para a próxima.
Fotos: França // Vale do Loire. Aeródromo de Amboise-Dièrre.

Continuámos viagem e ao final do dia já estávamos calmamente em Bordéus, bem instalados, com vistas para o “lac du Bordeaux” e com mesa marcada no restaurante gourmet do hotel, que até tinha uns quantos écrans onde se podia observar a evolução dos nossos pratos na cozinha! Havia que preparar bem a última etapa desta viagem!

Habitualmente costumamos colocar um limite bastante conservativo à extensão das etapas de ligação em auto-estrada, mantendo-as sempre abaixo dos oiticentos a novecentos quilómetros. É uma distância que se faz muito bem com velocidades em torno dos 120 km/h, com todas as paragens de descanso, almoço e permitindo mesmo uma ou outra visita mais demorada. Chega-se ao final do dia ainda com tempo para um bom mergulho retemperador na piscina do hotel, se a tiver, e com energias para um novo dia. Mesmo sabendo que se conseguem fazer muito mais quilómetros por dia nestas condições (auto-estrada / velocidade), temos sempre evitado “tiradas à emigrante”. Desta feita, resolvemos testar uma etapa ligeiramente mais longa, mas ainda assim abaixo dos 1100 quilómetros, para ver a nossa reacção após mais de três semanas “na estrada”. Fez-se bastante bem, num trajecto já conhecido, com os dois chauffers de serviço e claro, com o “apoio logístico” calmamente recostada no banco traseiro… a ler o último livro das aventuras de Harry Potter…

A considerar, “sem medos”, em futuras viagens! Agora, é tempo de recordar, rever e… sonhar com a próxima viagem...

Ah! O telemóvel da nossa filha ainda estava em Paris, no hotel do Parque Astérix… Tinham-se esquecido de no-lo enviar… Franceses!


      Luís de Matos
(Novembro de 2011)



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