segunda-feira, 5 de maio de 2008

Marrocos 2008 – Emoção e Paixão
Um passeio com o "Clube LeiriVida TT"


Texto: Luís de Matos
Fotos: Luís de Matos e outros participantes no passeio


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Foto 01: O percurso.

Não resistimos ao apelo! Um passeio à laia de expedição cruzando Marrocos e incluindo algum trabalho de beneficência era por demais atractivo para inventar mais uma desculpa para não ir. E lá se deu início à infindável cruzada de preparativos, com especial cuidado para o "Pantera" (assim baptizado há muitos anos pela nossa filha, quando ainda se deliciava com os desenhos animados do "Moggli - o filho da selva" e os seus grandes amigos, o urso Balú e a pantera negra Baguera!), o nosso Range Rover Classic 300 Tdi, já com 13 anos e 220.000 km de bons e fieis serviços.

Foto 02: Cheffchaouen.


Foto 03: O primeiro "almoço de campo"!


O convite partiu do "Clube LeiriVida TT" (http://www.leirividatt.com/), amigos de longa data, com quem costumamos fazer passeios de todo-o-terreno turístico, onde pontificam o convívio e a amizade, o espírito de equipa, as paisagens de suster a respiração, assim como os aspectos culturais e gastronómicos das zonas visitadas. Mas ainda não tínhamos ido a Marrocos com eles, apesar de todos os anos nos desafiarem!

Foto 04: Midelt, à entrada do Alto Atlas.

Foto 05: Alto Atlas.

O objectivo da viagem não era o de visitar cidades, nem ir às compras. Para isso existem circuitos comerciais. Procurava-se conhecer zonas remotas, de rara beleza. Procurava-se alcançar povoados perdidos, nas áreas mais inóspitas, onde a nossa chegada pudesse levar um pouco mais de felicidade e conforto, especialmente para as dezenas, centenas, de crianças. Procurava-se desfrutar do prazer da condução todo-o-terreno em condições diferentes, desde a alta montanha às areias do deserto e da praia. O planeamento e a boa preparação, de pessoas e materiais, era crucial. O espírito de participação também. Neste tipo de expedição, por razões de segurança, o percurso é realizado em caravana e se algum veículo avaria, a caravana pára até se resolver o assunto e todo o grupo retomar a marcha. Relembrando algumas forças de elite, ninguém é deixado para trás entregue à sua sorte. É uma expedição de grupo e o sucesso só é obtido se todo o grupo atingir o objectivo. Além do mais, tínhamos dois médicos, três enfermeiros, dois mecânicos profissionais (que realizaram intervenções que algumas oficinas conceituadas teriam receio de executar…), centenas de quilos de peças de reserva e comunicações, via rádio e via satélite. Em caso de avaria (e surgiram em quase todos os veículos!), maximiza-se a probabilidade de, entre todas as peças de reserva transportadas por todos os elementos da caravana, encontrar a necessária. Em caso de acidente, também a equipa médica e de enfermagem, assim como a “mala médica” e as comunicações por satélite, estão presentes.

Foto 06: Cirque du Jaffar.
Foto 07: É mesmo por aqui?

Com mantimentos, geleira eléctrica, jerrycans com sessenta litros de água, dezenas de quilos em peças de reserva, fogão e botijas de gás, mesa e cadeiras, toldo, tenda, colchão insuflável e sacos-cama, roupas e calçado, mala médica, pneus de reserva, jerrycans para o combustível, compressor de alto débito, pá e tapetes de desatascamento, cintas e manilhas, macaco pneumático, etc., etc., os "pópós" iam bem pesadotes...

Foto 08: Hora de ponta!


Foto 09: Lugar para mais um(a)?

O percurso foi fascinante, fora dos circuitos habituais do turismo (fora mesmo dos percursos TT mais corriqueiros), passando pelas mais remotas zonas de Marrocos. Cruzámos o Riff, o Alto Atlas, o início do deserto no Erg Chebbi, o vale de Tessaout e chegámos à Plage Blanche, já próximo do Sahara Ocidental, onde virámos de novo para Norte, para o caminho de regresso, com uma obrigatória paragem em Marrakech (e um hotel mais “à séria”). As paisagens eram fabulosas e as pessoas fantásticas, mesmo nas localidades mais pobres e perdidas, onde fizemos algum trabalho de beneficência.

Foto 10: Lago Izeli.

Foto 11: A caminho das "Aldeias perdidas".

Pernoitámos em hotéis, em albergues, em tendas... Apanhámos temperaturas de gelar pedras no Alto Atlas (ainda com neve à vista) e de derreter tudo no deserto... além de chuva nos primeiros dois dias... Se, na maior parte dos jantares, tínhamos o conforto de um dos tais hotéis e albergues... já para os almoços tivemos que ir "abastecidos", pois em muitos dos sítios nem saberiam o que poderia ser um restaurante!

Foto 12: Lago Tizlit.

Foto 13: Lago Tizlit.


Em termos genéricos, o percurso foi o seguinte, aproveitando criteriosamente os feriados do 25 de Abril e do 1º de Maio desse ano de 2008:

1º dia:
Leiria > Abrantes > Algeciras > Ceuta > Smir Restinga

2º dia:
Smir Restinga > Meknès > Azrou > Midelt

3º dia:
Midelt > Iseli > “Aldeias do fim-do-mundo” > Lago Tizlit

4º dia:
Lago Tizlit > Gargantas do Dadès > Erfoud > Erg Chebbi

5º dia:
Erg Chebbi > “Oásis Perdido” > Erg Chebbi

6º dia:
Erg Chebbi > … > Erg Chebbi

7º dia:
Erg Chebbi > Merzouga > Rissani > Erfoud

8º dia:
Erfoud > Skoura > Vale Tessaout > Relva

9º dia:
Relva > Vale Tessaout > Ouarzazate > Foum-Zguid > Tata

10º dia:
Tata > “Gargantas perdidas” > Guelmim > Fort Bou-Jerif

11º dia:
Fort Bou-Jerif > Plage Blanche > Tiznit

12º dia:
Tiznit > Marrakech

13º dia:
Marrakech > Smir-Restinga

14º dia:
Smir-Restinga > Ceuta > Algeciras > Abrantes > Leiria


Foto 14: Reabastecimentos finais, antes de deixar o lago Tizlit.

Foto 15: Sonhos de geólogo.


Não se vê fome, Graças a Deus, mas os povoados mais isolados não têm nada, absolutamente nada, apenas centenas de crianças e, sempre, uma escola. Tenho pena de não termos podido levar a nossa filha, pois teria sido bastante didáctico para ela. De qualquer das formas, as crianças participaram activamente na recolha de roupas, brinquedos e material escolar que levámos e cujas entregas já estavam previamente acordadas com algumas aldeias do Alto Atlas e do vale de Tessaout. Confesso que, até os mais endurecidos Humphrey Boggards da expedição sentiram as lágrimas rolarem-lhes pela face, ante a alegria genuína das crianças ao receberem uma peça de roupa, uma Barbie, um Nenuco, um carrinho, um caderno, uns lápis... Contámos também com o apoio da Fundação Montepio que nos disponibilizou centenas de kit de material escolar e brinquedos. Numa das aldeias em que fizemos a distribuição principal, o acesso segue uma picada pelo leito de um rio durante quase uma hora, depois de se ter deixado a picada principal... Fica fora de tudo. Ninguém lá vai e este Inverno estiveram dois meses isolados pela neve... Mas tem uma escola e um professor. Um indivíduo excepcional, formado em geologia pela universidade de Méknes e que, ao abrigo de um protocolo governamental, durante os primeiros anos após a formatura, está a dar aulas à escola primária. Escolheu a aldeia onde nasceu e onde viveu até ir estudar...

Foto 16: Passagem a 2.930 m de altitude.

Foto 17: Alto Atlas.

Inesquecível! É, um pouco, a grande diferença entre ir na óptica do turista, ou ir na óptica do viajante... Recomenda-se! Embora não sejam propriamente "férias de descanso"...

Foto 18: Albergue do Erg Chebbi.

Foto 19: Erg Chebbi.

Para lá da excelência das paisagens e das gentes, para lá do pequeno (face às necessidades) trabalho de beneficência, também tivemos a "história" da viagem... Tinha que ser! Pois nem vos digo nada! O deserto à hora de ponta é um autêntico IC19... e, muitas das vezes, quebram-se algumas regras basilares de segurança...

Foto 20: Tem que se dar "mais gás"... Prego a fundo!

Foto 21: Dromedários (não, não são camelos!) em Merzouga.

O "evento" deu-se ao final da manhã do primeiro dia nas dunas do Erg Chebbi. O jeito do condutor não era muito e a relação peso / potência ("Pantera" bem carregado e pesadão, com um motor 300 Tdi com os apenas 113 cv de origem...) também não ajudava nada. Mesmo as dunas pouco complicadas se estavam a revelar difíceis, mesmo com "prego a fundo", mesmo com "poço da morte" para ganhar velocidade, etc. Depois de umas quantas tentativas falhadas de ultrapassar "aquela" duna, consegui alargar um pouco mais a trajectória do "poço da morte" e ganhar alguma velocidade. Escusado será dizer que a velocidade foi, desta vez, um tudo nada excessiva e que, literalmente, "voei" sobre a crista da duna, mesmo já sem acelerador e com travões a fundo...! Parece que é muito habitual nestas lides... Tudo não teria passado de um belo momento fotográfico se, do outro lado da duna, não estivessem três carros "estacionados" lado a lado... Foi-me impossível parar e..., " LOUD BANG" na traseira de um Land Rover Defender.


Foto 22: Conhecer o Marrocos profundo em Rissani.

Foto 23: Oásis de Erfoud.

Uma das regras de ouro na travessia de dunas é que não se "estacionam" os carros na vertente oposta da duna que os outros estão a tentar passar. Estaciona-se na descida da duna seguinte… Pois...

Foto 24: Poços ao longo da linha de água subterrânea.

Foto 25: Início do vale de Tessaout.

Felizmente que ninguém se magoou e que o pneu de reserva amorteceu os estragos no outro veículo. No "Pantera", a parte da frente é mesmo de deformação progressiva e ficou feita num "oito", com radiador e tubos rebentados, faróis, grelhas e correias partidas, etc.


Foto 26: De onde é que saíram mais estes?

Foto 27: Alto Atlas.

O momento fotográfico seguinte envolveu três Land Rover, em tandem, a rebocar o "Pantera" dunas fora até ao albergue do Erg Chebbi, sem nunca atascar! Ainda pensei em terminar o passeio aí e chamar a assistência em viagem... Valeu a insistência de todos para que o carro se reparasse em Rissani e que continuássemos o passeio.


Foto 28: Vale de Tessaout.

Foto 29: Vale de Tessaout.

O Zaid Bouchadour, dono do albergue Erg Chebbi, foi fantástico. Chamou um reboque (uma velha Mercedes que puxou o "Pantera" com um cabo de aço mais fino do que aqueles que usamos para o estendal da roupa...) e negociou com uma oficina local o preço do arranjo. É que no dia seguinte era sexta-feira e nesses dias, em países islâmicos, não se trabalha a menos que seja por uma causa muito especial... Estivemos quase duas horas a assistir à negociação (em árabe, porque naquelas latitudes já quase ninguém fala francês, nem espanhol)!

Foto 30: Vale de Tessaout.

Foto 31: Vale de Tessaout.

O Zaid acompanhou sempre os trabalhos e a procura de peças, não apenas para nós, como também para dois Nissan Patrol e uma Mazda BT 50 (rolamentos gripados, caixa de velocidades "off" e radiador lixado após uma aterragem na passagem em "voo" de uma duna...) que, no dia seguinte, se juntaram às "baixas"! Acho que tínhamos todas as oficinas de Rissani a trabalhar para nós e lá se ia conseguindo garantir reboques, mecânicos, electricistas, peças, alojamentos, etc. O jeito que o "arranhar" do francês e do castelhano deu!


Foto 32: Libertar um veículo apanhado numa rocha sumersa.

Foto 33: Ainda o inesquecível vale de Tessaout.

Pela nossa parte e já que "o burro estava no espoujeiro", acabámos por aproveitar e conhecer ainda melhor o Marrocos "profundo", os seus bairros, os seus mercados e as suas gentes (nunca dei tanta "bacalhauzada" e abraços, nem bebi tanto chá de menta nos dias da minha vida!). Por exemplo, enquanto esperávamos pela segunda leva de "baixas", a minha mulher já negociava tapetes numa loja e eu estava sentado à beira da estrada, à entrada de Rissani, a beber chá de menta com uma data de marroquinos (alguns falavam francês e traduziam para árabe e berbere!), a falar das nossas famílias, das nossas vidas, etc. Só me faltava mesmo o turbante!


Foto 34: Edifício da escola primária.

Foto 35: A última das entregas de material escolar planeadas.

Entretanto, a oficina lá conseguiu por o carro em condições mínimas de prosseguir viagem. Soldaram o radiador (depois acabou por ter de levar também um tapa-fugas e mais uns metros de fita vulcanizadora nos tubos de borracha...), endireitaram o capôt e os guarda-lamas, pintaram tudo, colocaram uns faróis e uns piscas, etc. Foram-me ainda levar o veículo, já noite fora, ao Hotel Xaluca. Um povo "cinco estrelas"! O resto pessoal da caravana levou as restantes coisas que eu tinha deixado no albergue do Erg Chebbi e, no dia seguinte, lá carregámos tudo e nos juntámos à caravana (que tinha, entretanto, feito os restantes dois dias de deserto) e fizemos o resto do passeio, os restantes 3.000 km! Entretanto, já reparei definitivamente os estragos, claro! Mas o "Pantera" ficou como novo! Até brilha! Mandei-o arranjar em Foros de Salvaterra (Várzea Fresca), no Hélder Tiago.


Foto 36: Os nossos magos da mecânica.

Foto 37: "Gargantas Perdidas".

Já agora, para todos aqueles que pretendem adquirir um verdadeiro veículo TT "multi-usos" (Não! O "Pantera" não está à venda!), sugiro que se deixem tentar por um Range Rover Classic 300 Tdi. Para além de ser muito comedido nos consumos (fez 10,2 l / 100 km nestes mais de 5.000 km) e bastante confortável (as várias hérnias que pontuam na minha coluna vertebral não protestaram demasiado), foi um dos poucos veículos desta expedição (de 18 veículos) que não teve qualquer avaria durante todo o percurso (o acidente no Erg Chebbi e os problemas de radiador daí adventes, não contam, claro)... É certo que a sorte também dita leis, mas a fiabilidade esteve bem em alta! Graças a Deus!


Foto 38: Serpentes em Fort Bou-Jeriff.

Foto 39: Plage Blanche.

Uma nota final sobre as fotos deste artigo. Sendo certo que as melhores imagens de uma expedição ficam na retina e na alma, conseguiu-se ainda assim reunir um apreciável conjunto de DVDs carregados de fotografias! Como muitos de nós fotografámos os mesmos temas a partir dos mesmos pontos..., tornou-se difícil identificar o autor de cada fotografia. Se, inadvertidamente, fiz uso indevido de alguma imagem, as minhas desculpas. Pelo menos, foi por uma boa causa!

Foto 40: Plage Blanche. O último "almoço de campo".

Foto 41: Plage Blanche.

Foto 42: Quase cem quilómetros de circulação legal em praia.

Foto 43: Marrakesh mágica.

Até à próxima!


Luís de Matos

[Abril de 2009]

Também publicado em:

http://www.ttverde.pt/content/view/1331/106/




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